O meu nome é Bhoye Diallo. Nasci na Guiné Conacri em 2001. Vivi ali, desde que nasci, com os meus pais e os meus dois irmãos mais novos. Durante a minha infância, tanto o meu pai como a minha mãe trabalhavam e eu e os meus irmãos íamos à escola. Tudo corria bem. Não tenho muitas recordações concretas de momentos passados nesta fase da vida. Lembro-me apenas que, por vezes, o nosso pai nos levava perto do mar, que era calmo e os meninos podiam brincar. Ou dos momentos em que ficávamos com ele a ver televisão e nos explicava o que estávamos a ver. Guardo na memória esta serenidade que ele nos fazia sentir e a curiosidade que aguçava em nós com as suas explicações. Os meus pais, mas sobretudo o meu pai, sempre acreditaram em mim e sempre disseram que eu era uma pessoa capaz de realizar os meus sonhos. Fizeram-me acreditar em mim próprio e desenvolver confiança nas minhas capacidades. Mas tudo mudou quando fiquei sem o meu pai, tinha eu 13 anos. Tinha morrido uma das pessoas que eu mais admirava na minha vida. Uma pessoa muito querida, lutadora e inspiradora para mim. Ele sempre quis que eu me tornasse uma grande pessoa que gostasse de estudar e de aprender. Dizia-me que a educação seria o meu maior trunfo para concretizar o seu sonho de tornar a Guiné Conacri um país melhor. E prometi a mim próprio, e a ele, que me ia esforçar para o concretizar. Esta tragédia marcou-me profundamente. Quando perdi o meu pai, senti-me completamente desesperado. E sempre, mas especialmente nesta fase, a minha mãe foi uma pessoa fundamental para me fazer sentir mais seguro e confiante. Ela esteve sempre comigo e sempre teve as palavras certas para as dizer quando eu precisava de as ouvir: “Não te preocupes, meu filho! Estou aqui, contigo, para o que for preciso! Vamos estar sempre juntos!” Naquela altura, na Guiné Conacri vivia-se um clima de elevada instabilidade. As manifestações populares contra o regime vigente eram diárias e a polícia resolvia a situação atirando a matar sobre as pessoas com armas de guerra. Lembro-me que um dia, a caminho da escola, por volta das 10 horas da manhã, comecei a ouvir as pessoas a gritar: “Vão todos para casa! Polícia! Polícia!” Comecei a correr, cheio de medo, a tentar escolher os caminhos certos para não ver video me cruzar com a polícia. Eu sabia que eles matavam, sem perguntar nada.... Só cheguei a casa às 16h00. Durante 6 horas, andei a fugir enquanto a minha mãe rezava, preocupada, e sem saber se eu ia chegar a casa são e salvo. Tendo em conta o contexto de guerra, a minha mãe não conseguia arranjar emprego e nós não podíamos ir à escola. Então, em 2016, a minha mãe decidiu abandonar o nosso país e ir para a Guiné Bissau, onde supostamente tudo era mais calmo e havia mais oportunidades, para que pudéssemos estudar. Mas a Guiné Bissau também não trouxe à nossa família a estabilidade que procurávamos. Naquela vila tão pequena, a minha mãe não tinha trabalho que permitisse sustentar a família e a minha avó, que era um suporte importante, ficou doente. Em agosto de 2017, a minha mãe sentou-se comigo e disse-me que teríamos de voltar para a Guiné Conacri. Senti-me a viver um pesadelo e percebi que todo o meu futuro estava em risco. Era evidente que o meu sonho, e que o sonho do meu pai, ficava ameaçado se eu voltasse à Guiné Conacri. Nessa noite, não conseguia parar de pensar nas palavras da minha mãe e disse para mim mesmo: “Eu tenho duas opções: posso continuar deitado na cama a sonhar, ou posso levantar-me e lutar para realizar o meu sonho”. E eu sabia que o meu sonho - de ser Presidente da Guiné Conacri para melhorar a situação do país onde nasci – merecia ser levado a sério. Nessa noite, tomei uma decisão muito difícil: de sair do meu país, abandonando a minha família, sem dizer nada a ninguém. Tudo para conquistar a oportunidade de ter e de dar uma vida melhor a todos e para poder continuar a estudar para realizar o meu sonho. O plano era parar no primeiro país que me permitisse isso. Fui de autocarro para o Senegal. Lá permaneci três meses, mas nada foi como eu esperava. Só me confrontei com mais dificuldades. Então continuei em direção à Mauritânia. Aqui, só tinha a oportunidade de estudar na escola corânica – conhecimentos que eu já detinha – e isso não me ajudava a realizar o meu projeto. Decidi continuar e atravessar o deserto do Sahara. As viagens para migrantes atravessarem o deserto ocorrem em condições muito duras e difíceis. Andei pelo deserto numa carrinha de caixa aberta, com mais de vinte pessoas sentadas umas em cima das outras. O espaço era muito pouco e a posição em que estávamos sentados era muito desconfortável, cansativa e dolorosa. Todos comentavam histórias que tinham ouvido sobre aquelas travessias e todos sabíamos que, que se alguém caísse da camioneta, o motorista não pararia e ficaríamos entregues a nós mesmos, à fome, à sede e ao passar do tempo. Em cada viagem, cada passageiro tinha direito a levar dez litros de água, o que é manifestamente pouco para uma viagem que pode durar entre três dias e um mês inteiro, sob o sol quente. No meio de todas estas adversidades, tínhamos que evitar o encontro com os Tuareg que, sem respeitar grandes regras, eram vistos como perigosos ladrões do deserto. O sentimento predominante era o medo. A cada segundo me confrontava com a morte. Quilómetro a quilómetro, ao longo do caminho, se olhássemos conseguíamos ver esqueletos ou ossos isolados de pessoas que já tinham tentado a fazer aquela travessia e não tinham conseguido. Ainda hoje, quando me lembro disso, sinto-me extremamente pequenino. Apesar do perigo, depois de atravessar a Guiné-Bissau, o Senegal, a Mauritânia e o deserto do Sahara, entrei em Marrocos. Eram diferentes e, no entanto, as dificuldades mantinham-se. Os árabes com os quais me cruzei tiveram inúmeras atitudes racistas para comigo. A cada dia em que estive neste país, as crianças atiravam-me pedras e insultavam-me, só por causa da minha cor da pele. Faziam isso com todas as pessoas que tinham a pele negra. Lembro-me de um dia em que fui a um restaurante em Tânger, Boukhalef. Estavam quatro jovens sentados a comer e eu sentei-me ao lado deles. Todos se levantaram e saíram do restaurante porque não queriam estar ao meu lado. Um deles até cuspiu na minha cara e as outras pessoas não disseram nada em minha defesa. Na verdade, eu estava sozinho e também não protestei, mas aquele comportamento magoou-me muito. E isto não acontecia só nos restaurantes. Mesmo na mesquita, que devia ser um local de manifestação de fé e de celebração da igualdade, as pessoas trocavam de lugar quando eu entrava para rezar. Eu sempre fui um muçulmano praticante, mas nesta altura questionei a minha religiosidade. Houve alturas em que nem sequer tinha vontade de ir à mesquita só para não me confrontar com aqueles comportamentos. No entanto, depois de refletir, percebi que estava ali para orar a Deus não por eles, por isso não desisti.
Com a Polícia marroquina, as coisas também não eram fáceis. Os refugiados eram humilhados constantemente. Com regularidade destruíam o nosso acampamento, levavam as nossas provisões, queimavam todos os nossos pertences. Mal eles chegavam, nós tínhamos que fugir pois se nos apanhassem, tiravam-nos tudo (o telemóvel, o dinheiro...) e deixavam-nos na fronteira, a 800 quilómetros de distância, sem forma de regressar a Tânger. As dificuldades eram muitas e eu tinha que lutar pela minha sobrevivência, por isso limpava as ruas voluntariamente e acabava por viver da boa vontade das pessoas que me davam algum dinheiro por isso. Mas o meu sonho continuava presente em mim e senti que tinha de continuar o meu caminho. Acabei por tentar atravessar o mar – de Tânger para a Espanha - num barco de contrabandistas. Foi uma viagem muito difícil. Éramos quarenta e oito pessoas e um bebé num barco insuflável e nesta travessia perdemos uma jovem de 15 anos por ter caído ao mar. Mais uma vez me via olhos nos olhos com a morte e com o medo. Mas felizmente, consegui chegar a Espanha. Com as experiências que vivi ao longo desta viagem – nomeadamente as histórias de discriminação e de necessidade – eu queria escolher um país onde pudesse usufruir dos meus direitos como refugiado, mas, acima de tudo, como pessoa. Pesquisei na Internet e Portugal aparecia como um dos países que melhor recebia os migrantes. Fiz tudo para conseguir chegar a Portugal, inclusivamente mentir quanto à minha idade (uma vez que eu ainda era menor) para não me impedirem de viajar. Fui muito bem-recebido em Portugal. Sinto-me bem cuidado pelas pessoas que Deus pôs na minha vida e, finalmente, voltei a estudar (mesmo tendo que aprender do zero uma língua nova, já que, quando cheguei, não dizia uma palavra de português). Mal me foi possível, telefonei à minha mãe. Já não falava com ela há meses e ela achava que eu tinha morrido pelo caminho. É muito difícil e raro sobreviver sozinho a esta travessia. Quando me ouviu começou a chorar. Pedi-lhe desculpa por ter saído sem dizer nada e renovei a minha promessa: vou estudar! Era disse-me, como quando eu era criança, que eu era muito corajoso e que acreditava que eu ia conseguir... que tinha muito orgulho em mim. A Academia de Líderes Ubuntu surgiu após a minha chegada a Portugal e foi muito importante para mim. Mudou completamente a minha vida e perspetiva sobre diversas coisas, ajudando-me a ter uma abordagem mais compreensiva, até sobre a minha própria vida.
Se me perguntarem, hoje, sobre o que é a história do Bhoye Diallo, responderia que é uma história de resiliência. Hoje, sei isso, apesar de já ter tido esta lição, pelo exemplo e boca do meu pai, ainda em tenra idade: Um dia, tinha acabado de chegar da escola e vi que o meu pai estava a plantar duas árvores. Ele virou-se para mim e disse: “Bhoye, vamos fazer uma experiência? Vou plantar uma destas árvores dentro de casa e a outra no exterior. Na tua opinião, qual é que crescerá mais rápido?”. Depois de um momento de reflexão, eu respondi: “Acho que será aquela que vai crescer dentro de casa. Evitará o vento forte e o sol quente. A vida dela será mais fácil”. Surpreendentemente, meu pai apenas respondeu: “Isso é o que veremos…”. O tempo passou e eu nunca mais me lembrei das árvores! Mas enquanto me esquecia da existência destas árvores, o meu pai continuava a cuidar delas atentamente ao longo dos anos. Três anos depois, houve um dia em que recordei este momento e pedi ao meu pai para ver o resultado. Ele mostrou-me as duas árvores e perguntou: “Então, o que é que achas? Qual é a maior?” E eu respondi: “A maior é a que cresceu fora de casa, mas não percebo porquê! Ela enfrentou muito mais provações do que a outra!” “Estás certo!” - respondeu-me. “E foram precisamente essas dificuldades que permitiram que ela se tornasse tão forte e imponente. Achas que valeu a pena passar por tudo isso? “Completamente!” - exclamei. “É evidente como os ramos se erguem majestosamente para o céu”. Neste dia, o meu pai ensinou-me uma lição de vida que nunca esquecerei. Disse-me: “Contigo passar-se-á exatamente o mesmo. Se tu optares por não fazer nada, começarás a murchar. O caminho da facilidade só te levará à mediocridade. Foram as dificuldades pelas quais esta árvore passou que a fizeram tão alta e bonita. Então, em todas vezes que tu sentires que estás a desesperar numa situação difícil, não te esqueças: sairás mais forte e maior…”.