Dizer que Portugal é um país racista é uma generalização sociológica pelo menos tão abusiva quanto a pretensão oposta: a de que Portugal não é um país racista.
Falar de racismo não é pior do que estar calado. Isso é conformarmos-nos com a ideia de que o racismo é um monstro inevitável que mais vale deixar estar — como se estivesse adormecido. Receá-lo assim é como dizer às nossas filhas que não usem mini-saias para não despertarem vontades agressoras. Tem de se falar de racismo, explicá-lo, e quando for o caso, denunciá-lo. Se o monstro existe, mesmo adormecido, é melhor despertá-lo e combatê-lo, até porque nada nos garante que não esteja a ser nutrido enquanto achamos que dorme.
Mas dizer que Portugal é um país racista é uma generalização sociológica pelo menos tão abusiva quanto a pretensão oposta: a de que Portugal não é um país racista. O contrato social que fez o estado de direito democrático a que chamamos Portugal — com a sua Constituição e os valores que a norteiam, do 25 de abril e dos três D — não é racista. E a todos aqueles que lutaram por isso estamos gratos, porque instituíram um regime político com o quadro de valores necessário para que se possa continuar a aprofundar princípios de justiça e de igualdade.
Posto isto, é evidente que há racismo em Portugal. Sabemos que a potência colonial que foi o Estado Novo assentou numa visão racista da sociedade, antiga e demasiado entranhada para que simplesmente se esfumasse com a deposição do regime que a alimentou. Sabemos que nos anos 70 e 80 do século passado grande parte dos nossos avós não olhavam angolanos, guineenses ou moçambicanos como cidadãos plenos e lembramo-nos das muitas “anedotas de pretos” que ouvíamos nas escolas ou mesmo em reuniões de família.
Mas se fizermos este esforço de memória, não podemos deixar de reconhecer que muito caminho se fez ao longo destas décadas em que vigoraram os princípios da liberdade e da igualdade de direitos. E que aliás coincidiram, pelo menos desde meados dos anos 80, com o crescimento em Portugal de comunidades oriundas dos países antes colonizados.
Se o racismo persiste, a verdade é que a convivência com comunidades racializadas num ambiente democrático também o foi desnaturalizando e tornando inaceitável na maior parte das esferas da vida pública. E a verdade é que não se contam hoje as mesmas anedotas que contávamos, não sem pelo menos a consciência da gravidade do que elas representam.
Mas, se é verdade que este caminho foi feito, também é verdade que houve outros de sentido bem diferente e negativo. A sociedade é complexa e acolhe tendências contraditórias.
Primeiro, os anos 80 e 90 foram vendo crescer um racismo de submundo, contra as instituições, que aproveitou os lugares de onde elas estavam ausentes para brutalizar. Vimos as investidas violentas do racismo nos ataques nocturnos dos gangues de skinheads ou nas claques de futebol. E nunca deveremos esquecer-nos de como foi assassinado Alcindo Monteiro. A estas investidas a sociedade respondeu com a devida intolerância à intolerância, muitas vezes com exposição ao risco. Um dia, o estado de direito português deveria mostrar o seu maior reconhecimento pelo trabalho extraordinário de associações como a SOS racismo.
Segundo, as décadas que contam a idade da democracia mantiveram em silêncio uma separação social atroz. Os bairros periféricos guetizaram-se, pobres e impermeáveis à capacitação que a escola devia assegurar. Foram décadas que passaram sem que acontecesse a dissolução da desigualdade social expressa na cor da pele. Pelo contrário, nesses bairros a desigualdade social guardou a diferença de cor e, certamente, só muito pouco realismo não reconheceria o contrário: que a diferença de cor inibiu o caminho da maior igualdade.
Terceiro, se nos deixa facilmente perplexos ver as babás negras atrás das famílias brancas nos calçadões brasileiros, mais facilmente não vemos a cor sempre igual da pele de quem está a varrer as folhas dos jardins públicos, ou o lixo do chão dos supermercados aonde vamos diariamente fazer as nossas compras, pessoas nossas concidadãs, demasiado caladas. Até que a excepção que o nosso estado de direito gostaria que fosse regra, sem o conseguir, rompe e grita que quer tudo aquilo a que tem direito. E com razão nos censura a distracção. E exige que deixemos de não ver aquilo que vemos todos os dias que saímos à rua.
Há uns meses o repórter brasileiro Gilberto Porcidonio lançava no Twitter a provocação «Se o racismo acabasse HOJE, o que você faria?» E é um lençol de respostas que descrevem gestos tão banais mas que «só surpreendem quem não tem pele preta»: «Eu iria ao shopping de chinelo FÁCIL.», «Pegaria o celular da bolsa dentro de loja sem medo», «andaria atrás das pessoas tranquilo sem querer passar na frente delas logo», «Correria na rua, com tranquilidade», etc.
Surpreende e revolta o grau de auto vigilância e a falta de liberdade a que estão sujeitas pessoas por causa da cor da sua pele. É no Brasil, mas sabemos que também é cá. O exemplo de Cláudia Simões é dolorosamente ilustrativo. Tivesse ela sido mais submissa, tivesse tido presente qual era a cor da sua pele e a cor da pele da sua filha, tivessem percebido as duas que não podem estar à vontade na rua… afinal, para demasiados, esta não é realmente a terra delas, tenham ou não passe, tenham ou não cartão do cidadão.
Mas, além de tudo o que se disse, o racismo está hoje a assumir uma nova e grave dimensão, inédita na história da democracia portuguesa. Tenta por todos os meios desvincular-se da marginalidade. Tenta, com alarmante sucesso, entrar nas instituições públicas e por elas ser reconhecido. Por exemplo, nas forças de segurança, a braços com a endémica falta de meios económicos e de reconhecimento positivo. As investidas do racismo nas forças de segurança parecem ser bem mais do que uma infiltração de marginais.
O caminho é o mesmo que quase leva o racismo à Assembleia da República. A Assembleia que ainda há um ano premiava um trabalho jornalístico sério sobre racismo é a mesma em que hoje tem assento um representante que propõe que outra deputada portuguesa «seja devolvida ao seu país de origem».
Este tipo de discurso é um rastilho em palha seca, pronta a arder, num tempo em que as pessoas têm dificuldade em encontrar alternativas dentro do arco da democracia e em que o descontentamento flui e se mostra por redes e canais que antes não conhecíamos.
É por essas redes que o monstro oportunista busca o seu alimento e vai também surgindo em plena luz do dia. Alimenta-se de todos os descontentamentos que puder parasitar, sempre pretexto para encontrar falsos culpados, sejam os “pretos”, os ciganos que roubam, e agora os chineses que transmitem doenças. Mas também sugando os restos bolorentos de um nacionalismo que infelizmente ainda encontra ecos vários no nosso tempo.
O racismo é verdadeiramente um morto-vivo que se vai nutrindo em vários ressentimentos sociais. Alimenta-se mesmo de cada palavra contra si proferida, receamos, pensando numa lógica de soma incontrolada de reações e de reações a reacções. Mas mais receio devemos ter se nos calarmos. Porque o racismo tem vítimas. Agora são umas, depois virão outras. Se não lhe fechamos a primeira porta, vai ser cada vez mais difícil fechar-lhe portas nos nossos locais de trabalho, nos espaços de convívio e até nas nossas casas.
Erramos muito, e talvez irreversivelmente, se encaramos o ressurgimento do racismo como qualquer coisa que existe apesar da democracia e da Constituição Portuguesa. É o regime que está em causa quando o seu consenso fundamental, mais activamente ou mais resignadamente subscrito da esquerda à direita, é visado.
Erramos se achamos que o arco das forças e sensibilidades políticas que devem opor-se ao ressurgimento do racismo são apenas de esquerda, ou pior, são apenas a parte da esquerda mais ligada ao activismo anti-racista. Aliás, também a direita democrática e dos direitos tem de ser convocada.
Erramos ao achar que o activismo anti-racista faz mal quando enfatiza, e até grita, a sua luta.
Erramos ao não reconhecer legitimidade a uma política das identidades sempre que a identidade é usada como um jugo de discriminação e desigualdade. E não erramos menos se fizermos das identidades um direito à intolerância, um direito a calar quem quer que seja. Nem a pluralidade de abordagens, nem a diferença geracional podem ser obstáculos ao entendimento fundamental de que o inimigo a combater é o racismo.
Erramos ao não reconhecer legitimidade a uma política das identidades sempre que a identidade é usada como um jugo de discriminação e desigualdade. E não erramos menos se fizermos das identidades um direito à intolerância, um direito a calar quem quer que seja. Nem a pluralidade de abordagens, nem a diferença geracional podem ser obstáculos ao entendimento fundamental de que o inimigo a combater é o racismo.
Erramos ao não identificar o modo parasitário como o racismo bebe de diversas fontes, umas antigas, mas outras novas, como um morto-vivo.
Erramos profundamente se cedemos ao tribalismo das redes sociais, ao maniqueísmo entre formas de luta. Erramos se acusamos de racismo quem nunca o foi apenas por não se reconhecer num activismo anti-racista.
E erramos se censuramos a um activista anti-racista não estar tão atento como outros à crise climática, à luta dos trabalhadores, ou à corrupção. Por definição, os activismos são particulares.
E erramos se cedemos ao hábito que diminui a legitimidade de novas vozes com valores certos, mesmo se gritados com menos cordialidade académica e numa linguagem pouco apreciada.
Assim, sobram-nos os melindres cívicos e alienamos o que deveria sobrelevar todas as razões. Todos são necessários diante de uma ameaça aos valores do regime, que começará no racismo e não parará antes de pôr em causa todas as garantias fundamentais ligadas ao direito à diferença, escolhida ou não, sem prejuízo da igualdade de direitos e de oportunidades em liberdade.
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