03 março 2025

“Porque é que a maioria dos britânicos não gostam de Donald Trump?”

Nate White, um escritor de Inglaterra, brilhante e espirituoso, escreveu a seguinte resposta:

"Algumas coisas vêm-me à cabeça. Faltam a Trump certas qualidades que os britânicos tradicionalmente apreciam. Por exemplo, não tem classe, nem encanto, nem credibilidade, nem compaixão, nem inteligência, nem cordialidade, nem sabedoria, nem subtileza, nem sensibilidade, nem autoconsciência, nem humildade, nem honra e nem graça - todas estas qualidades, curiosamente, com que o seu antecessor, o Sr. Obama, foi generosamente abençoado.

Portanto, para nós, esse forte contraste coloca as limitações de Trump num relevo confrangedoramente acentuado.

Além disso, gostamos de rir. E embora Trump possa ser risível, nunca disse nada de irónico, espirituoso ou sequer ligeiramente divertido – nem uma vez, nunca.

Não o digo retoricamente, quero dizer literalmente: nem uma vez, nem nunca. E este facto é particularmente perturbador para a sensibilidade britânica – para nós, faltar humor é quase desumano. Mas com Trump, é um facto. Nem parece compreender o que é uma piada – a sua ideia de piada é um comentário grosseiro, um insulto analfabeto, um ato casual de crueldade.

Trump é um troll. E como todos os trolls, nunca tem piada e nunca se ri; apenas canta ou troça. E, assustadoramente, não fala apenas em insultos grosseiros e estúpidos – pensa mesmo neles. A sua mente é um algoritmo simples, semelhante a um bot, de preconceitos mesquinhos e maldades instintivas.

Nunca há qualquer camada subjacente de ironia, complexidade, nuance ou profundidade. É tudo superficial.

Alguns americanos podem vê-lo como algo refrescante e direto. Bem, nós não. Vemos isto como não tendo mundo interior, nem alma.

E na Grã-Bretanha estamos tradicionalmente do lado de David, e não de Golias. Todos os nossos heróis são corajosos underdogs: Robin Hood, Dick Whittington, Oliver Twist. Trump não é corajoso nem um oprimido. Ele é exatamente o oposto disso. Nem sequer é um miúdo rico mimado ou um gato gordo ganancioso. Ele é mais uma lesma branca e gorda. Um Jabba the Hutt do privilégio.

E pior, é a coisa mais imperdoável para os britânicos: um rufia. Isto é, exceto quando está entre bullies; depois, de repente, transforma-se num companheiro chorão. Existem regras tácitas para estas coisas – as regras de decência básica de Queensberry – e ele quebra todas elas. Dá um murro para baixo – o que um cavalheiro deveria, faria, nunca poderia fazer – e cada golpe que desfere é abaixo da cintura. Gosta particularmente de pontapear os vulneráveis ​​ou sem voz e pontapeia-os quando estão caídos.

Portanto, o facto de uma minoria significativa – talvez 1/3 dos americanos - olhar para o que ele faz, ouvir o que ele diz e depois pensar: “Sim, ele parece ser o meu tipo de rapaz” é motivo de  confusão e não pouca angústia para o povo britânico, dado que:

* Os americanos deveriam ser mais simpáticos do que nós, e na sua maioria são.

* Não precisa de um olhar particularmente atento aos pormenores para detectar algumas falhas no homem.


Este último ponto é o que confunde e consterna especialmente o povo britânico, e também muitas outras pessoas; os seus defeitos parecem muito difíceis de ignorar. Afinal, é impossível ler um único tweet, ou ouvi-lo dizer uma ou duas frases, sem olhar profundamente para o abismo.

Transforma a simplicidade numa forma de arte; é um Picasso da mesquinhez; um Shakespeare de merda. As suas falhas são fractais: até as suas falhas têm falhas, e assim por diante, ad infinitum.


Deus sabe que sempre existiram pessoas estúpidas no mundo, e muitas pessoas desagradáveis ​​também. Mas raramente a estupidez foi tão desagradável, ou a maldade tão estúpida. Faz Nixon parecer confiável e George W. Bush parecer inteligente. Na verdade, se Frankenstein decidisse fazer um monstro montado inteiramente a partir de falhas humanas daria um Trump.

E um arrependido Doutor Frankenstein agarrava grandes tufos de cabelo e gritava de angústia: 'Meu Deus... o que... eu... criei?'

 

Se ser idiota fosse um programa de TV, Trump seria uma série completa."

01 março 2025

a Bispo Mariann Edgar Budde pede diretamente a Trump que mostre misericórdia e fala sobre jovens LGBTQ receosos


Já passa algum tempo (22/01/2025) de quando foi feito o discurso mas faz sempre sentido o que ela diz!!!

Texto integral do sermão da bispa Mariann Edgar Budde

“Como país, reunimo-nos esta manhã para rezar pela unidade, não por um acordo, político ou outro, mas pelo tipo de unidade que promove a comunidade acima da diversidade e da divisão. Uma unidade que sirva o bem comum. A unidade, neste sentido, é um pré-requisito para que as pessoas vivam em liberdade e juntas numa sociedade livre. É a rocha sólida, como disse Jesus, sobre a qual se constrói uma nação.

Não é conformidade. Não é a vitória. Não é o cansaço educado ou a passividade nascida da exaustão. A unidade não é partidária. Pelo contrário, a unidade é uma forma de estarmos uns com os outros que abraça e respeita as nossas diferenças. Ensina-nos a considerar as múltiplas perspetivas e experiências de vida como válidas e dignas de respeito. Permite-nos, nas nossas comunidades e nas esferas de poder, preocuparmo-nos genuinamente uns com os outros, mesmo quando não estamos de acordo.

Aqueles que, por todo o país, dedicam as suas vidas ou se voluntariam para ajudar os outros em situações de catástrofe natural, muitas vezes com grande risco para si próprios, nunca perguntam àqueles que ajudam em quem votaram nas últimas eleições ou qual a sua posição numa determinada questão. O melhor que podemos fazer é seguir o seu exemplo, pois a unidade é, por vezes, sacrificial, tal como o amor: darmo-nos nós próprios para o bem dos outros.

No Sermão da Montanha, Jesus de Nazaré exorta-nos a amar não só o nosso próximo, mas também os nossos inimigos, a rezar por aqueles que nos perseguem, a ser misericordiosos como o nosso Deus é misericordioso, a perdoar aos outros como Deus nos perdoa a nós. Jesus esforçou-se por acolher aqueles que a sua sociedade considerava excluídos.

Agora, reconheço que a unidade, neste sentido amplo e expansivo, é uma aspiração, pela qual urge rezar. É uma grande petição ao nosso Deus, digna do melhor do que somos e do que podemos ser. Mas as nossas orações de pouco servirão se agirmos de forma a aprofundar ainda mais as divisões entre nós. As Escrituras são muito claras a este respeito: Deus nunca se impressiona com as orações quando as nossas ações não são influenciadas por elas. Deus também não nos poupa das consequências das nossas ações, que acabam sempre por ser mais importantes do que as palavras que rezamos.

Aqueles de nós que se encontram aqui reunidos na catedral não são ingénuos em relação às realidades da política – quando o poder, a riqueza e os interesses concorrentes estão em jogo, quando as visões do que a América deve ser estão em conflito, quando existem opiniões fortes num espetro de possibilidades e os entendimentos marcadamente diferentes sobre qual é a linha de ação correta. Haverá vencedores e vencidos quando se vota ou se tomam decisões que definem a direção das políticas públicas e a atribuição de prioridades aos recursos.

 

“A cultura do desprezo neste país ameaça destruir-nos”

Bispa Mariann Edgar Budde durante a sua intervenção. Foto C-Span

A bispa Mariann Edgar Budde durante a sua intervenção. Foto © C-Span

Escusado será dizer que, numa democracia, nem todas as esperanças e sonhos específicos de todos podem ser realizados numa determinada sessão legislativa ou mandato presidencial, ou mesmo numa geração. Ou seja, nem todas as orações específicas de cada um serão atendidas como desejaríamos. Mas, para alguns, a perda das suas esperanças e sonhos será muito mais do que uma derrota política: será uma perda de igualdade e dignidade, e dos seus meios de subsistência.

Tendo isto em conta, será possível uma verdadeira unidade entre nós? E porque é que nos devemos preocupar? Bem, espero que nos preocupemos. Espero que nos preocupemos porque a cultura do desprezo que se normalizou neste país ameaça destruir-nos. Todos nós somos bombardeados diariamente com mensagens daquilo a que os sociólogos chamam atualmente o “complexo industrial da indignação”, algumas delas impulsionadas por forças externas cujos interesses são servidos por uma América polarizada. O desprezo alimenta as campanhas políticas e as redes sociais, e muitos beneficiam com isso, mas é uma forma perturbadora e perigosa de governar um país.

Sou uma pessoa de fé, rodeada de pessoas de fé e, com a ajuda de Deus, acredito que a unidade neste país é possível – não perfeitamente, porque somos pessoas imperfeitas e uma união imperfeita – mas o suficiente para que todos nós continuemos a acreditar nos ideais dos Estados Unidos da América e a trabalhar para os tornar realidade. Ideais expressos na Declaração de Independência, com a sua afirmação da igualdade e dignidade humanas inatas. E temos razão em pedir a ajuda de Deus na nossa busca da unidade, pois precisamos da ajuda de Deus, mas só se nós próprios estivermos dispostos a cuidar dos alicerces de que depende a unidade. Tal como a analogia de Jesus de construir uma casa sobre a areia, os alicerces de que precisamos para a unidade devem ser suficientemente sólidos para resistir às muitas tempestades que a ameaçam.

 

Fundamentos da unidade: dignidade, verdade e humildade

Quais são os fundamentos da unidade? Com base nas nossas tradições e textos sagrados, permitam-me que sugira que há pelo menos três. O primeiro fundamento da unidade é honrar a dignidade inerente a cada ser humano, que, como todas as religiões aqui representadas afirmam, é o direito inato de todas as pessoas como filhos do nosso único Deus. No discurso público, honrar a dignidade dos outros significa recusar-se a ridicularizar, rejeitar ou demonizar aqueles de quem discordamos, optando, em vez disso, por debater respeitosamente as nossas diferenças e, sempre que possível, procurar um terreno comum. E quando não é possível chegar a um consenso, a dignidade exige que nos mantenhamos fiéis às nossas convicções sem desprezar aqueles que têm as suas próprias convicções.

O segundo fundamento da unidade é a honestidade, tanto nas conversas privadas como no discurso público. Se não estivermos dispostos a ser honestos, não vale a pena rezar pela unidade, porque as nossas ações vão contra as nossas orações. Podemos, durante algum tempo, experimentar uma falsa sensação de unidade entre alguns, mas não será a unidade mais forte e mais ampla de que precisamos para enfrentar os desafios que temos pela frente. Agora, para sermos justos, nem sempre sabemos onde está a verdade, e há agora muitas coisas que vão contra a verdade. Mas quando sabemos o que é verdade, cabe-nos dizer a verdade, mesmo quando, especialmente quando, isso nos custa.

O terceiro e último fundamento da unidade que mencionarei hoje é a humildade, de que todos precisamos porque somos todos seres humanos falíveis. Cometemos erros, dizemos e fazemos coisas de que mais tarde nos arrependemos, temos os nossos pontos cegos e os nossos preconceitos, e somos talvez mais perigosos para nós próprios e para os outros quando estamos convencidos, sem sombra de dúvida, de que estamos absolutamente certos e que os outros estão totalmente errados. Porque então estamos a um passo de nos rotularmos como as pessoas boas frente às pessoas más. E a verdade é que todos somos pessoas: somos capazes de fazer o bem e o mal. Como Alexander Solzhenitsyn observou astutamente: “A linha que separa o bem do mal não passa por Estados, nem por classes, nem por partidos políticos, mas sim por cada coração humano, por todos os corações humanos”.

E quanto mais nos apercebermos deste facto, mais espaço teremos dentro de nós para a humildade e a abertura mútua entre as nossas diferenças. Porque, de facto, somos mais parecidos do que imaginamos, e precisamos uns dos outros.

É relativamente fácil rezar pela unidade em ocasiões de grande solenidade. É muito mais difícil consegui-lo quando nos confrontamos com diferenças reais na nossa vida privada e na esfera pública. Mas sem unidade, estamos a construir a casa da nossa nação sobre a areia. E com um empenhamento na unidade que incorpore a diversidade e transcenda o desacordo, e com a base sólida de dignidade, honestidade e humildade que a unidade exige, podemos fazer a nossa parte, no nosso tempo, para concretizar os ideais e o sonho da América.

 

“Coragem para honrar a dignidade de cada ser humano”

Manifestação a favor da imigração nos EUA. Foto © Nitish Meena | Unsplash

Manifestação a favor da imigração nos EUA. Foto © Nitish Meena | Unsplash

Permitam-me que faça um último apelo. Senhor Presidente, milhões de pessoas depositaram a sua confiança em si e, como disse ontem [no comício] à nação, sentiu a mão providencial de um Deus amoroso. Em nome do nosso Deus, peço-lhe que tenha piedade das pessoas do nosso país que agora têm medo. Há crianças gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas das quais temem pelas suas vidas. E as pessoas que apanham as nossas colheitas, limpam os nossos edifícios de escritórios, trabalham nas explorações avícolas e nos frigoríficos, lavam a loiça depois das refeições nos restaurantes e fazem turnos de noite nos hospitais: podem não ser cidadãos ou não ter a documentação adequada, mas a grande maioria dos imigrantes não são criminosos. Pagam impostos e são bons vizinhos. São membros fiéis das nossas igrejas, mesquitas, sinagogas, viaras e templos.

Peço-lhe que tenha piedade, Senhor Presidente, daqueles que, nas nossas comunidades, têm filhos que receiam que os pais lhes sejam retirados, e que ajude os que fogem de zonas de guerra e de perseguição nas suas próprias terras a encontrar compaixão e acolhimento aqui. O nosso Deus ensina-nos que devemos ser misericordiosos para com o estrangeiro, pois todos nós fomos estrangeiros nesta terra.

Que Deus nos dê a força e a coragem para honrar a dignidade de cada ser humano, para dizer a verdade uns aos outros em amor e para caminhar humildemente uns com os outros e com o nosso Deus para o bem de todas as pessoas nesta nação e no mundo.

Amen”.

26 fevereiro 2025

Espero que gostem!


Paz e guerra


A declaração de Robert De Niro sobre Donald é perfeita.  Por favor leia:
 “Passei muito tempo a estudar homens maus.   Examinei as suas características, os seus maneirismos, a banalidade absoluta da sua crueldade.  Mas há algo de diferente em Donald Trump.
 Quando olho para ele, não vejo um homem mau.  Verdadeiramente.
 Vejo um ser maligno.
 Ao longo dos anos, tenho conhecido gangsters aqui e ali.  Este tipo tenta ser um, mas não consegue.  Existe algo chamado “honra entre ladrões”.
 Sim, até os criminosos têm, muitas vezes, uma noção do que é certo e errado.   Se fazem a coisa certa ou não, é outra história — mas — têm um código moral, por mais distorcido que seja.
 Donald Trump não.  É um tipo duro sem moral ou ética.  Sem sentido de certo ou errado.  Sem consideração por mais ninguém para além de si próprio — nem pelas pessoas que deveria liderar e proteger, nem pelas pessoas com quem faz negócios, nem pelas pessoas que o seguem, cega e lealmente, nem mesmo pelas pessoas que se consideram seus “amigos”.
  Tem desprezo por todos eles.
 Nós, nova-iorquinos, já o conhecemos há anos, pois envenenou a atmosfera e encheu a nossa cidade de monumentos ao seu ego.   Sabíamos, por experiência própria, que se tratava de alguém que nunca deveria ser considerado para liderança.
  Tentámos alertar o mundo em 2016.
 As repercussões da sua turbulenta presidência dividiram os Estados Unidos e abalaram a cidade de Nova Iorque para lá da imaginação.   Recorde como fomos abalados pela crise no início de 2020, quando um vírus varreu o mundo.  Convivíamos com o comportamento bombástico de Donald Trump todos os dias no panorama nacional e sofríamos ao ver os nossos vizinhos amontoados em sacos para cadáveres.
 O homem que deveria proteger este país colocou-o em perigo por causa da sua imprudência e impulsividade.  Era como um pai abusivo a governar a família através do medo e do comportamento violento.   Essa foi a consequência do aviso de Nova Iorque ter sido ignorado.  Da próxima vez, sabemos que será pior.
 Não se deixe enganar: Donald Trump, que já foi acusado duas vezes e acusado quatro vezes, continua a ser um tolo.  Mas não podemos deixar que os nossos compatriotas americanos o descartem como tal.  O mal prospera na sombra da zombaria desdenhosa, e é por isso que devemos levar o perigo de Donald Trump muito a sério.
 Assim, hoje emitimos outro alerta.  Deste lugar onde Abraham Lincoln falou — aqui mesmo no coração pulsante de Nova Iorque — para o resto da América:
 Esta é a nossa última oportunidade.
 A democracia não sobreviverá ao regresso de um aspirante a ditador.
 E não vencerá o mal se estivermos divididos.
 Então o que fazemos em relação a isso?   Eu sei que estou aqui a pregar para convertidos.   O que estamos a fazer hoje é valioso, mas temos de levar o hoje para o amanhã – levá-lo para fora destas paredes.  
 Temos de estender a mão à metade do nosso país que ignorou os perigos de Trump e, por qualquer razão, apoia o seu regresso à Casa Branca.   Não são estúpidos e não devemos condená-los por fazerem uma escolha estúpida.   O nosso futuro não depende apenas de nós.  Depende deles.
 Vamos estender a mão aos seguidores de Trump com respeito.
 Não vamos falar de “democracia”.   “Democracia” pode ser o nosso Santo Graal, mas para outros é apenas uma palavra, um conceito, e ao abraçarem Trump, já lhe viraram as costas.  
 Vamos falar sobre o certo e o errado.   Vamos falar de humanidade.  
 Vamos falar de bondade.   Segurança para o nosso mundo.   Segurança para as nossas famílias.   Decência.  
 Vamos recebê-los de volta.  
 Não os conseguiremos todos, mas podemos conseguir o suficiente para acabar com o pesadelo de Trump e cumprir a missão desta
“Cimeira para Parar Trump”.

A incompreensível abdicação dos Estados Unidos


Pedro Guerreiro

O que se oferece a alguém que tudo tem? Paranóia. A aproximar-se do seu 250.º aniversário, a América mergulhou numa absolutamente desnecessária crise de meia-idade, convencendo-se de uma doença imaginária que só pode ser curada a golpes de motosserra, numa neurose alimentada a demagogia, propaganda e desinformação, mas com consequências reais, devastadoras e irreversíveis, para si e para o resto do mundo.

Em apenas um mês, os EUA dinamitaram a sua posição cimeira no sistema internacional. A pressão extorsionária para que a Ucrânia capitule incondicionalmente perante Moscovo, a ameaça de anexação da Gronelândia e até mesmo do Canadá, a guerra comercial, a campanha flagrante pelas forças de extrema-direita nas eleições alemãs e os discursos isolacionistas e reaccionários de J.D. Vance e Pete Hegseth em Munique e Bruxelas extinguiram o elemento-chave da relação transatlântica: a confiança. 

encontro amistoso entre Trump e o Presidente francês, Emmanuel Macron, esta segunda-feira, em Washington, pode até indiciar um possível apaziguamento depois de semanas de comportamento incendiário. No entanto, uma vez perdida a confiança, os sorrisos de Macron e Trump na Casa Branca não devem ser interpretados como muito mais que cortesia.

Mais substantivas, e de longo alcance, foram as palavras do próximo chanceler alemão, o conservador Friedrich Merz, na noite de domingo: "Estou a comunicar com muitos primeiros-ministros e chefes de Estado da União Europeia, e para mim é uma prioridade absoluta fortalecer a Europa o mais rapidamente possível, para alcançarmos a independência em relação aos Estados Unidos, passo a passo. (...) Nunca pensei que alguma vez precisaria de dizer algo como isto, na televisão, mas depois das mais recentes declarações de Donald Trump na semana passada, torna-se claro que os americanos – em qualquer caso, estes americanos, esta Administração –​ basicamente não se importam com o futuro da Europa". 

O gambito norte-americano na Europa não comprará a amizade e a confiança russas, ainda que possa gerar um desanuviamento circunstancial e oportunidades económicas para figuras bem posicionadas. Moscovo sorri, mas sabe que é Pequim que lhe oferece estabilidade. Nesta segunda-feira que marca o terceiro aniversário da invasão de larga escala da Ucrânia, o Presidente chinês, Xi Jinping, telefonou ao homólogo russo, Vladimir Putin, para reafirmar uma parceria "sem limites", "de longo prazo" e "valor estratégico único", e que "não visa nem é influenciada por terceiros". 

É também a China a grande beneficiária do incompreensível desmantelamento da ajuda externa norte-americana, que poderá custar milhões de vidas a prazo e, uma vez mais, todo o capital de confiança de Washington em vastas áreas da Ásia, África e América Latina, esta última também sob a ameaça expansionista norte-americana. 

No Médio Oriente, Trump insiste na ideia de remover permanentemente os palestinianos de Gaza e dá carta branca a Israel para regressar à guerra quando quiser, ameaçando até um dos poucos capítulos positivos do seu primeiro mandato: os Acordos de Abraão, que tinham permitido uma relativa normalização das relações entre o Estado hebraico e as potências árabes. 

É tentador atribuir estratégia e intencionalidade à política externa de Trump 2.0, aludir à teoria do homem louco, ou recuperar grelhas de análise de outros tempos, como o chavão do imperialismo. Mas isso implicaria um benevolente fechar de olhos à sucessão de acções erráticas e contraproducentes do último mês, e sobretudo ignorar que as reconfigurações em curso no palco internacional, agora aceleradas, terão como resultado uma perda relativa do poder norte-americano.

É também apetecível, para quem não tiver a menor predisposição a assumir as dores dos norte-americanos, celebrar a extraordinária abdicação de Washington e o fim de uma era nas relações internacionais. Mas o processo em curso faz-se de corridas às armas, da suspensão da ajuda humanitária, da extorsão de países fragilizados, do bloqueio de esforços multilaterais vitais no ambiente e na saúde pública, da promoção de tiranetes e de partidos extremistas, do empoderamento sem precedentes de multimilionários igualmente extremistas, da corrosão das instituições e da confiança. Não só o mundo de hoje é objectivamente pior do que o mundo imperfeito de 19 de Janeiro de 2025, como as possibilidades de melhoria estão hoje mais distantes.

A abdicação externa dos Estado Unidos encontra paralelo no plano interno. Trump entregou ao homem mais rico do mundo, que lhe pagou a campanha eleitoral, uma motosserra para esventrar o mesmo Estado que, ao longo de décadas, foi motor e não obstáculo do extraordinário crescimento económico e tecnológico do país –​ da corrida ao espaço até à criação da internet.

Os cortes cegos na administração pública federal (dezenas de milhares de despedimentos até ao momento, verbas de milhares de milhões de dólares congeladas), justificados com histórias falsas ou exageradas de fraude e desperdício (eis duas boas súmulas, do New York Times e da CNN), começam a ser sentidos a jusante. Há universidades a cancelar programas de doutoramento, milhares de cientistas dispensados ou sem financiamento, agricultores arruinados, fornecedores do Estado a fechar portas, governadores e congressistas republicanos preocupados e acossados pelos seus eleitores.

O deslumbramento de quem vê um país como pouco mais que um quadro regulatório para o sector tecnológico não é partilhado pela generalidade dos norte-americanos. A confiança dos consumidores caiu 10% em Fevereiro face a Janeiro, segundo um barómetro de referência da Universidade do Michigan. Um relatório preliminar da S&P Global indica que a actividade comercial está em mínimos de 17 meses. Na sexta-feira, a bolsa fechou com a maior queda desde meados de Dezembro, e após semanas de estagnação, perante os receios em torno do impacto inflacionário das políticas de Trump. 

Enquanto isso, e ao passo que se afastam generais de quatro estrelas pelo pecado de uma tomada de posição anti-racista, enche-se o mesmo Estado de figuras absolutamente desqualificadas, escolhidas pela sua fidelidade a Trump ou pela presença na Fox News. Na noite de domingo, o anúncio do próximo número dois do FBI: Dan Bongino, um dos mais prolíficos divulgadores de teorias da conspiração da era das redes sociais. Dizem que é a meritocracia.

Grandes nações e impérios caíram ao longo da História. Pela ascensão dos seus rivais, por aventuras militares desastrosas, por terríveis crises internas. Poucos países (nenhum, arrisca Ryan Cooper na American Prospect) terão escolhido abdicar da sua liderança de forma tão voluntária, incompreensível e sobretudo desnecessária como os Estados Unidos.

Pedro Guerreiro

28 janeiro 2025

Não há mau tempo, só roupa inadequada

Mariann Edgar Budde, bispa da diocese de Washington da Igreja Episcopal, tornou-se uma figura central das cerimónias inaugurais do segundo mandato de Donald Trump, ao implorar ao Presidente que tenha misericórdia de quem vive com medo de algumas medidas que anunciou.

O serviço de oração foi organizado na catedral nacional da capital política do país como parte dos atos oficiais, esta terça-feira, dia 21, e nas primeiras filas concentravam-se Trump e o seu vice, com as respetivas famílias, que não se cansaram de dar sinais do incómodo que as palavras da dirigente religiosa lhes estavam a causar.

Depois de ter mostrado que a unidade do país não pode existir sem o reconhecimento da dignidade das pessoas e honestidade e humildade de todos, especialmente de quem dirige o país, a prelada disse que há crianças filhas de imigrantes ou de gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas das quais temem que os pais lhes sejam retirados à força.

Muitos dos que realizam trabalhos essenciais para a vida do país podem não ter ainda os papeis para serem cidadãos de pleno direito, mas “pagam impostos e são bons vizinhos”, além de serem “membros fiéis das nossas igrejas, mesquitas, sinagogas, viaras e templos”, apelou Budde, perante a assembleia, na qual se encontravam responsáveis de várias confissões religiosas. “Peço-lhe que tenha misericórdia, senhor presidente!”, rematou.

Pelo conteúdo da intervenção desta responsável cristã e pela carga simbólica do seu gesto, o 7MARGENS publica na íntegra o texto do seu sermão.

 

Texto integral do sermão da bispa Mariann Edgar Budde

“Como país, reunimo-nos esta manhã para rezar pela unidade, não por um acordo, político ou outro, mas pelo tipo de unidade que promove a comunidade acima da diversidade e da divisão. Uma unidade que sirva o bem comum. A unidade, neste sentido, é um pré-requisito para que as pessoas vivam em liberdade e juntas numa sociedade livre. É a rocha sólida, como disse Jesus, sobre a qual se constrói uma nação.

Não é conformidade. Não é a vitória. Não é o cansaço educado ou a passividade nascida da exaustão. A unidade não é partidária. Pelo contrário, a unidade é uma forma de estarmos uns com os outros que abraça e respeita as nossas diferenças. Ensina-nos a considerar as múltiplas perspetivas e experiências de vida como válidas e dignas de respeito. Permite-nos, nas nossas comunidades e nas esferas de poder, preocuparmo-nos genuinamente uns com os outros, mesmo quando não estamos de acordo.

Aqueles que, por todo o país, dedicam as suas vidas ou se voluntariam para ajudar os outros em situações de catástrofe natural, muitas vezes com grande risco para si próprios, nunca perguntam àqueles que ajudam em quem votaram nas últimas eleições ou qual a sua posição numa determinada questão. O melhor que podemos fazer é seguir o seu exemplo, pois a unidade é, por vezes, sacrificial, tal como o amor: darmo-nos nós próprios para o bem dos outros.

No Sermão da Montanha, Jesus de Nazaré exorta-nos a amar não só o nosso próximo, mas também os nossos inimigos, a rezar por aqueles que nos perseguem, a ser misericordiosos como o nosso Deus é misericordioso, a perdoar aos outros como Deus nos perdoa a nós. Jesus esforçou-se por acolher aqueles que a sua sociedade considerava excluídos.

Agora, reconheço que a unidade, neste sentido amplo e expansivo, é uma aspiração, pela qual urge rezar. É uma grande petição ao nosso Deus, digna do melhor do que somos e do que podemos ser. Mas as nossas orações de pouco servirão se agirmos de forma a aprofundar ainda mais as divisões entre nós. As Escrituras são muito claras a este respeito: Deus nunca se impressiona com as orações quando as nossas ações não são influenciadas por elas. Deus também não nos poupa das consequências das nossas ações, que acabam sempre por ser mais importantes do que as palavras que rezamos.

Aqueles de nós que se encontram aqui reunidos na catedral não são ingénuos em relação às realidades da política – quando o poder, a riqueza e os interesses concorrentes estão em jogo, quando as visões do que a América deve ser estão em conflito, quando existem opiniões fortes num espetro de possibilidades e os entendimentos marcadamente diferentes sobre qual é a linha de ação correta. Haverá vencedores e vencidos quando se vota ou se tomam decisões que definem a direção das políticas públicas e a atribuição de prioridades aos recursos.

 

“A cultura do desprezo neste país ameaça destruir-nos”

Bispa Mariann Edgar Budde durante a sua intervenção. Foto C-Span


A bispa Mariann Edgar Budde durante a sua intervenção.

Escusado será dizer que, numa democracia, nem todas as esperanças e sonhos específicos de todos podem ser realizados numa determinada sessão legislativa ou mandato presidencial, ou mesmo numa geração. Ou seja, nem todas as orações específicas de cada um serão atendidas como desejaríamos. Mas, para alguns, a perda das suas esperanças e sonhos será muito mais do que uma derrota política: será uma perda de igualdade e dignidade, e dos seus meios de subsistência.

Tendo isto em conta, será possível uma verdadeira unidade entre nós? E porque é que nos devemos preocupar? Bem, espero que nos preocupemos. Espero que nos preocupemos porque a cultura do desprezo que se normalizou neste país ameaça destruir-nos. Todos nós somos bombardeados diariamente com mensagens daquilo a que os sociólogos chamam atualmente o “complexo industrial da indignação”, algumas delas impulsionadas por forças externas cujos interesses são servidos por uma América polarizada. O desprezo alimenta as campanhas políticas e as redes sociais, e muitos beneficiam com isso, mas é uma forma perturbadora e perigosa de governar um país.

Sou uma pessoa de fé, rodeada de pessoas de fé e, com a ajuda de Deus, acredito que a unidade neste país é possível – não perfeitamente, porque somos pessoas imperfeitas e uma união imperfeita – mas o suficiente para que todos nós continuemos a acreditar nos ideais dos Estados Unidos da América e a trabalhar para os tornar realidade. Ideais expressos na Declaração de Independência, com a sua afirmação da igualdade e dignidade humanas inatas. E temos razão em pedir a ajuda de Deus na nossa busca da unidade, pois precisamos da ajuda de Deus, mas só se nós próprios estivermos dispostos a cuidar dos alicerces de que depende a unidade. Tal como a analogia de Jesus de construir uma casa sobre a areia, os alicerces de que precisamos para a unidade devem ser suficientemente sólidos para resistir às muitas tempestades que a ameaçam.

 

Fundamentos da unidade: dignidade, 

verdade e humildade

Quais são os fundamentos da unidade? Com base nas nossas tradições e textos sagrados, permitam-me que sugira que há pelo menos três. O primeiro fundamento da unidade é honrar a dignidade inerente a cada ser humano, que, como todas as religiões aqui representadas afirmam, é o direito inato de todas as pessoas como filhos do nosso único Deus. No discurso público, honrar a dignidade dos outros significa recusar-se a ridicularizar, rejeitar ou demonizar aqueles de quem discordamos, optando, em vez disso, por debater respeitosamente as nossas diferenças e, sempre que possível, procurar um terreno comum. E quando não é possível chegar a um consenso, a dignidade exige que nos mantenhamos fiéis às nossas convicções sem desprezar aqueles que têm as suas próprias convicções.

O segundo fundamento da unidade é a honestidade, tanto nas conversas privadas como no discurso público. Se não estivermos dispostos a ser honestos, não vale a pena rezar pela unidade, porque as nossas ações vão contra as nossas orações. Podemos, durante algum tempo, experimentar uma falsa sensação de unidade entre alguns, mas não será a unidade mais forte e mais ampla de que precisamos para enfrentar os desafios que temos pela frente. Agora, para sermos justos, nem sempre sabemos onde está a verdade, e há agora muitas coisas que vão contra a verdade. Mas quando sabemos o que é verdade, cabe-nos dizer a verdade, mesmo quando, especialmente quando, isso nos custa.

O terceiro e último fundamento da unidade que mencionarei hoje é a humildade, de que todos precisamos porque somos todos seres humanos falíveis. Cometemos erros, dizemos e fazemos coisas de que mais tarde nos arrependemos, temos os nossos pontos cegos e os nossos preconceitos, e somos talvez mais perigosos para nós próprios e para os outros quando estamos convencidos, sem sombra de dúvida, de que estamos absolutamente certos e que os outros estão totalmente errados. Porque então estamos a um passo de nos rotularmos como as pessoas boas frente às pessoas más. E a verdade é que todos somos pessoas: somos capazes de fazer o bem e o mal. Como Alexander Solzhenitsyn observou astutamente: “A linha que separa o bem do mal não passa por Estados, nem por classes, nem por partidos políticos, mas sim por cada coração humano, por todos os corações humanos”.

E quanto mais nos apercebermos deste facto, mais espaço teremos dentro de nós para a humildade e a abertura mútua entre as nossas diferenças. Porque, de facto, somos mais parecidos do que imaginamos, e precisamos uns dos outros.

É relativamente fácil rezar pela unidade em ocasiões de grande solenidade. É muito mais difícil consegui-lo quando nos confrontamos com diferenças reais na nossa vida privada e na esfera pública. Mas sem unidade, estamos a construir a casa da nossa nação sobre a areia. E com um empenhamento na unidade que incorpore a diversidade e transcenda o desacordo, e com a base sólida de dignidade, honestidade e humildade que a unidade exige, podemos fazer a nossa parte, no nosso tempo, para concretizar os ideais e o sonho da América.

 

“Coragem para honrar a dignidade de cada 

ser humano”

Manifestação a favor da imigração nos EUA. Foto © Nitish Meena | Unsplash

Manifestação a favor da imigração nos EUA. 

Permitam-me que faça um último apelo. Senhor Presidente, milhões de pessoas depositaram a sua confiança em si e, como disse ontem [no comício] à nação, sentiu a mão providencial de um Deus amoroso. Em nome do nosso Deus, peço-lhe que tenha piedade das pessoas do nosso país que agora têm medo. Há crianças gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas das quais temem pelas suas vidas. E as pessoas que apanham as nossas colheitas, limpam os nossos edifícios de escritórios, trabalham nas explorações avícolas e nos frigoríficos, lavam a loiça depois das refeições nos restaurantes e fazem turnos de noite nos hospitais: podem não ser cidadãos ou não ter a documentação adequada, mas a grande maioria dos imigrantes não são criminosos. Pagam impostos e são bons vizinhos. São membros fiéis das nossas igrejas, mesquitas, sinagogas, viaras e templos.

Peço-lhe que tenha piedade, Senhor Presidente, daqueles que, nas nossas comunidades, têm filhos que receiam que os pais lhes sejam retirados, e que ajude os que fogem de zonas de guerra e de perseguição nas suas próprias terras a encontrar compaixão e acolhimento aqui. O nosso Deus ensina-nos que devemos ser misericordiosos para com o estrangeiro, pois todos nós fomos estrangeiros nesta terra.

Que Deus nos dê a força e a coragem para honrar a dignidade de cada ser humano, para dizer a verdade uns aos outros em amor e para caminhar humildemente uns com os outros e com o nosso Deus para o bem de todas as pessoas nesta nação e no mundo.

Amen”.