Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador
na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida,
“Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não
esteja vivo”.
São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas
que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas
ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar
muito. Não vou escrever aqui um artigo desse género, primeiro, porque
não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e
daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características
muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se
preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema
deste número da Granta: “Falhar melhor”.
Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma
amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de
incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma
infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico especialista
dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O senhor tem uma
massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava muito grave
e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela
cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos
orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha
mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a
podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a
seca mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a
olhar lá para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a
correr-lhe pela cara.
Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me
sem preocupações, coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz
qualquer pessoa parecer que sofre ininterruptamente dos intestinos,
deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas notícias: não tarda, iriam
informar-me de que se tratava de uma chatice menor. Estivemos depois
hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala de espera.
Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso
instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O
radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a
uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia
linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável.
Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a
dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.
Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina
oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas)
e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias
do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi
suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para
tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.
Quando voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero,
um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos
tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil, como se
fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era branca.
Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que
trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico
do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do radiologista. Mais
tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como lingotes de ouro
vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena fazer.
Essas opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só
quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa
altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e até
me ajudaria se fosse necessário. Como disse Plotia ao poeta em A Morte
de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a quem está só, o
conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres.”
Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no
nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de 23
de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de
Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze meses.
Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a
quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre.
Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a
todos.
Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.
A primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC,
por um médico homeopático (os médicos encartados não acham graça
nenhuma a que se chame médico a um homeopata, mas tenham santa
paciência). Sob sua orientação comecei por mudar radicalmente de regime
alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a maior parte das
pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu sistema
imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso, o
médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos
homeopáticos.
Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de
vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de
começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro.
Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava
arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo de
entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas
vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão
grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do
Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma
Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas
tempo de viver e não de morrer.
As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu.
Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia
à minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha neta aos
saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas análises foram
durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da maioria dos
desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia. Além disso,
como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei três romances,
uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei mais um
romance e um livro de contos.
Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem
um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de
Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que,
demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou
para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais
poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu
encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão
por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no
meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por
psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns
anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu
como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve
conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito
com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”
Quem é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que
experimentava em mim essa estranha alegria raivosa que emergira quando
soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que força psíquica
queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim, se
recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se
aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?
A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de
maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um
tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da
vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas,
nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a
vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de
repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me escorre por
vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta que
sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada
assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do
caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a
conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais
provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e
sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.
Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto
daquilo que escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar
ervas daninhas, em que admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada
ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede, o meu
tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de Páscoa: sinto
a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de quem
eu preciso.
O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou
a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do
diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no
pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais.
Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um,
todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o
sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com
mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o
interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma
corrida com os miúdos ou os cães.
Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi
crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco
com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o
penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a
melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à
Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde,
alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as
enfermeiras dos serviços continuados de saúde.
E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de
uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma
veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei
imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio acordar-me,
pensou que tudo estava acabado.
Ganhei depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias
inteiros deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em
Dezembro, embora não tenha atingido a violência da anterior, obrigou-me
a considerar uma transfusão de sangue que fiz num hospital que estava,
como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos que passei um dia
simultaneamente divertido e ofendido a observar a desordem que grassava à
minha volta.
As duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha
morte interior: regressei à melancolia com que me sentava à sua
cabeceira conversando com ela nas duríssimas semanas do Verão de 2012
que se seguiram ao veredicto do cancro. Como é que vou morrer?
Exactamente como?, perguntava-lhe.
Não me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido
desde o primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim
próprio.
Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o
meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre
que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do
psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.
O suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus que quer que a morte
de cada cristão seja a sua disponibilidade para de se entregar à Cruz no
momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele decidir. Mas eu e a
Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei aqui, em minha casa, e que nada
me fará embarcar no carnaval de luzes da ambulância para ir morrer a um
hospital. Esse juramento mantém-se.
Tomámos esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da
clínica onde fiz a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a
morte celebrava jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão
impossível controlar ou combater este sentimento como invocar a luz da
esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo paralisado de
terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e nos
riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de
uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre medicamentos
letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da morte
ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender,
precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto
mental que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.
Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma
espécie de novela sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o de
saber se, na altura definitiva, teria a certeza absoluta de não haver
outra solução. Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem valor
os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se me
enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do que a
escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?
Aquando da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma
resposta sem alternativa a estas questões. Depois de fechar os cães e
de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas,
ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa
transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a
coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me as
pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a mão
pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das
ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro
vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem
hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto,
ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma
hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até então,
alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns troncos
cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o
gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça,
dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de
que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os
olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol,
através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da
encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como
se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os
textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do
mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei
verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo
as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para
trás, para a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente
indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir
dominar a torrente de lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos
braços. Ficámos muito tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como
se fôssemos o tronco de uma grande árvore.
Não há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.
Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que
levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui
a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e
finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei
com o sofrimento nestes mais de mil dias:
“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.
S. Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015
Paulo Varela Gomes