26 abril 2015

carta para o Banzão



Querido Banzão, 

Quero falar sobre ti sem adjectivos, quero tornar a minha escrita mais simples. Tem a primeira dificuldade de descrever ser feito de adjectivos que não quero usar!

Vim para o Porto, para Gaia.

Falar/escrever sobre ti representa algum egocentrismo, alguma vaidade: tu és eu e eu sou tu. Gosto do que somos, mesmo quando estamos longe, ou até mais, vives em mim e eu em ti! 
Estando longe permites-me um olhar distante.

Já várias vezes tenho pensado, e tem evoluído, que quero e preciso encontrar um equilíbrio entre espaços: estar bem onde estou!

Desde os seis anos que sempre vivi e cresci aí com curtas passagens por Alemanha - Berlim, Lisboa - Benfica e Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA).

Viver num espaço significa sermos criados por ele, por suas pessoas, somos formados de onde e como vivemos, educar implica deixarmos partir para crescer sozinhos.

Percebes melhor qualidades e defeitos quando te deparas com um mundo novo e desconhecido, quando vives com novas pessoas que não tem memória de quem és, sem vivermos com quem nos conhece.

É preciso sairmos do conforto do lar para crescer, longe de ti, Banzão.

Fazes falta, mesmo se voltar cá ao fim de semana é receber um arraial de mimos, fazes-me falta de imensas maneiras: nas imagens dos passeios com as manas Joaquim à volta do pinhal, nas pessoas (os pais e tios, amigos e A Sunny) e nos animais (a Ginja e o Félix) com quem vivo, és muito Amor, nos espaços: no mar e nas ondas, na praia e na areia, na serra com sua vida: na terra, nas flores e nas árvores onde acampava em noitadas com os amigos, o pinhal onde és minha casa, as noitadas adolescentes, o ar, a luz, as brisas leves que respiro, o céu, as ideias, o escrever, o ler, as escolas preparatória da Sarrazola, onde íamos por exemplo roubar fruta em grupo nas horas livres. 

Falar sobre ti, Banzão, é falar sobre a minha vida, sobre o melhor que eu tenho.

A certa altura tornaste-me adepto algo fanático do futebol, por ele me tornei social ou por ser social me tornei jogador de futebol. O futebol é potenciador de conversas masculinas. Sempre gostei de conversar com elas também ou até mais com elas. Elas são mais potenciadoras de diversos assuntos que eles? Caio sempre neste erro de generalizar, falar em plurais. 

Depois cresci e interessei-me por muitas coisas e mundos!
 
Descontracção é o que me suscitas e uma responsabilidade em ser descontraído.

É exigente este espaço, estradas de terra batida, pinhais circundados por elas, obriga a querermos preservar a natureza de onde vimos e assimilá-la para a darmos ao outro; tu és muito habitado como segunda casa, de férias e de fim-de-semana.

Sou apaixonado por ti, ganhei a virtude de viver aqui mais com a população rural, outra classe; com mais reserva, mais fugido ao mundo e às pessoas.

Perto da capital: de três quartos de hora de carro quando viemos para cá, em 86, a meia hora agora, em 2015, podemos sempre ter acesso a outro tipo de cultura mais citadina, a distância não promove ausências, acaba por potenciar momentos mais intensos e trazer sossego e calma.

És conhecido pelas teus dotes românticos terem sido abordados por escritores, falada como referência mundial do Surf e Bodyboard, tens o ponto mais ocidental da Europa continental: o cabo da Roca, tens oceano e serra no mesmo espaço.

Quero elogiar-te!

Se alguma vez mudar mais efectivamente de casa, despedir-me de ti mais longamente, vai custar ou não quero.

Vivenda agradável cercada por teu jardim tem vida e boa energia.

Tens gestos admiráveis e sabores da cozinha mais bonita que conheço.

Teu corredor grande à entrada dá ideia de Democracia com muitas portas e livros, um mundo em cada um e uma.

A mesa na sala ensina que as refeições são alimento do corpo e da alma, potencia a conversa.

Cada quarto tem magia.

Tens lareira perante uma zona onde recolhemos à noite.

É difícil sentirmo-nos mal ali.

Abraço minha casa que te amo!

Zé Maria

entre o ir e voltar...



Jorge Palma - Demónios Interiores

há sentimentos.

há momentos.

há ternuras.

há muita coisa boa e...

... DEMÓNIOS INTERIORES!

25 abril 2015

ai Portugal, Portugal do que é que estás à espera?



Jorge Palma - Há Tanto Tempo (Espero Por Ti)

Há tanto tempo espero por ti
na solidão do meu lugar
vem aquecer-me a cama
traz flores para o jantar

Sempre habitaste o meu coração
és a razão do meu fervor
mas não te vejo a cara
não sinto o teu calor

Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei

Mesmo que tu não sejas real
ou sejas quem eu não previ
hei-de inventar-te sempre
hei-de esperar por ti

Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei

quando eu me for embora
diz que te encontrei


25 de Abril de 2015

tenho ouvido muitas pessoas falar de que estamos em retrocesso... a caminho de novos fascismos! 'O povo unido jamais será vencido': unamo-nos!

não me parece que a História se vá repetir e é bom pormo-nos sempre em causa... do que oiço falar-se do fascismo parece distante mas...
'O fascismo é uma minhoca (não é? lá isso é)
que se infiltra na maçã (não é? lá isso é)
ou vem com botas cardadas
ou com pezinhos de lã' (lá isso é de Sérgio Godinho)
 
talvez seja português 'isto' de dizermos mal do que somos, este discurso de dizermos mal do que somos (como agora eu), do velho do Restelo. Gente boa reunida na rua a manifestar-se, isto não havia há 34 anos, não havia isto e há muita coisa nova, felizmente.

o desafio no Norte





Várias vezes tentei explicar o que ando a fazer pelo Porto e por Gaia...

Não sei bem explicar mas tem sido forte e cada semana tem melhorado.

Estou a fazer várias actividades com um e O grupo de nove figuras/personagens altamente improváveis de se conhecerem de outra forma.

Tem sido bom, estou a sentir-me crescer a cada momento; sei que vou olhar para trás com Brio e vaidade no tempo bem passado

Tenho recebido muitos mimo, elogios de quem não me conhece e está a conhecer.

Estar à distância mas não tanto assim permite-me perceber Qualidade e apreciá-la: lá mas aqui!

18 abril 2015

posso fazer coisas melhores...






como imaginas o teu futuro? o que queres dele?

quero fazer qualquer coisa que solte sorrisos, dê bem estar, posso ser mais exigente comigo.

acho que, com certeza, passa por escrever...

11 abril 2015

Auto-Retrato

Sou do Rio grande não tenho medo de nada. Amo o Rio de Janeiro. Tenho dificuldade em dizer não. Gente careta me esnoba. Tenho péssima memória para nomes. Eu quase não gosto de música. Uso a mesma calça preta há três anos. Cozinho muito bem mas tenho preguiça. Odeio abóbora. Amo Elizabeth Taylor. Nunca fiz coleção. Adoro ajudar meus amigos se algo estiver a meu alcance. Sou lenta para revidar. Adoro cores. Não tolero acomodação de gente que trabalha comigo. Sou pontual. Paro no sinal vermelho. Torro pequenas fortunas em livros de arte. Detesto gente sem humor. Às vezes dou esmolas. Amo Miles Davis. Reclamo muito. Sei pedir desculpas. Compro discos pela capa. Não guardo mágoas. Adoro bichos. Não ligo pra dinheiro. Moro no Jardim Botânico em um pequeno apartamento pintado de amarelo. Ouço todas as fitas que me mandam. Adoro dançar. Amo Balanchine. Não suporto a síndrome retrô. Detesto quinquilharias. Amo Mondrian. Gosto de lavar louça. Preciso ficar sozinha. Gosto do Botafogo. Torço pelo Grêmio. Não sei jogar cartas. Adoraria fazer uma trilha para cinema. Gostaria de jogar golfe. Amo Tàpies. Bebo café demais. Não gosto de ar condicionado. Minha mãe diz que eu mudo muito. Sou esganada. Detesto verde-piscina. Amo João Cabral. Não sei tocar violão. Toco violão bem. Tenho braços lindos. Iberê Camargo pintou meu retrato. Conheço e reconheço as pessoas pelas mãos. Não tolero desperdício. Detesto courant d’air. Amo Lina Bo Bardi. Eu não gosto do bom gosto. Detesto remédio. Sou muito peluda. Adoro a Rainha da Inglaterra. Adoro brie. Gente cafona me esnoba. Nunca soube o que fazer com as mãos na presença de celebridades. Meus amigos dizem que eu mudo muito. Sempre fui feliz no amor. Amo Marlon Brando. Adoro o Guimas da Gávea. Não vivo sem champanhe. Tenho um "bicho" de Lygia Clark. Durmo bem menos do que gostaria. Adoro gente que diz " é ruim, hein?!". Detesto gente que mitifica. Gosto muito de dirigir. Não gosto de mistério. Desprezo gente fiteira. Adoro vermelhos e rosas. Hospedo infratores e banidos. Parei de fumar. Não tenho superstição alguma. Amo John Cage. Nunca quis ter filhos. A primeira palavra que eu li foi "México". Não gosto de me apresentar na televisão. Adoro minhas mãos. Adoro rir de mim mesma. Sou perdida por gente doida. Amo Issey Myake. Detesto velharias. Jornalistas dizem que eu mudo muito. Desprezo gente que se leva a sério. Adoro aristocratas. Não sei viver sem frutas. Sou bastante disciplinada. Quero muito conhecer o Egito. Tenho inveja dos elefantes. Amo Augusto de Campos. Adoro as cores do Mediterrâneo. Adoro a comida da Provence. Não suporto FreeShop e aquele monte de bugigangas. Detesto gente deslumbrada. Amo Merce Cuningham. Quero fazer canções bem simples. Quero saber para que serve uma canção. Amo Andy Warhol. Sou estrábica. Adio decisões muito importantes. Calço 38. Tenho um "trepante" de Lygia Clark. Adoro vinho. Não sei dar entrevistas. Adoro a Mangueira. Eu quero o Morro Dois Irmãos iluminado. Adoro mergulhar em Angra. Amo Mário Peixoto. Gente inculta me esnoba. Adoro azuis. Adoro Klein. Adoro Klee. Amo Matisse. Eu sempre digo sim. Eu gosto de fazer shows. Adoro cantar no Rio. Eu durmo no avião. Sou generosa em demasia. Amo Gertrude Stein. Sou louca por orquídeas. Estou fulminada por um amor há sete anos. Amo Hélio Oiticica. Adoro Joaquim Pedro de Andrade. Detesto estetização. Odeio folclorização. Eu não gosto de me ver no vídeo. Amo Oswald de Andrade. Tenho uma litogravura do Miró. No inverno não tomo café da manhã sem morangos. No verão não tomo café da manhã sem melancia. Ainda terei um móbile do Calder. Cometo barbaridades por um Swatch. Dizem que eu mudo muito.


Adriana Calcanhotto
Jornal do Brasil/ Caderno Mulher 09/09/1996

04 abril 2015

DIGNIDADE!!!

"Com a morte de Manoel de Oliveira fica um exemplo. Ele foi o sustentáculo de tudo o que de interessante se fez no cinema português, e fez-se muito, e foi tudo a partir da sua obra. É como se Oliveira tivesse aberto a porta para deixar as pessoas passarem por um caminho em que ele nunca confundiu o trabalho dele de cineasta com o do cinema comercial. E que foi sempre de defesa do cinema como actividade artística, de criação absoluta em que, naturalmente, o realizador é o grande criador, em pé de igualdade com um pintor ou um escritor.

Essa foi a grande marca do cinema português, não só de Oliveira mas de outros cineastas que se lhe seguiram, e que devem muito a ele e à sua intransigência.No meu caso, funcionou como um facto de profunda admiração. Eu comecei a perceber o que era o cinema, e a gostar de cinema, quando vi O Acto da Primavera. Eu não era actor, não era nada. De repente, fui ao cinema ver aquilo, que para mim era apenas a filmagem de um Auto da Paixão feito por amadores de Trás-os-Montes, e o filme mostrou-se-me uma coisa absolutamente arrebatadora. Não só pelo aspecto religioso, que, evidentemente, era muito importante. Mas também pelo que a câmara revelava sobre aquelas pessoas, sobre a relação do homem com deus e com a vida. E percebi que o cinema era uma arte muito importante, quando encarada daquela maneira. Daí veio uma atitude que se se prolongou durante toda a vida.

O cinema não é uma profissão. Eu nunca fui um profissional de cinema, fui sempre um actor que colaborou como artista na obra de outros artistas. E isto é uma marca que o Manoel deixou, e a quem todos os realizadores de cinema português têm que ficar agradecidos.
Não quer dizer que vão fazer um cinema igual ao do Manoel. Aliás, nota-se bem que os cineastas mais jovens têm o respeito que normalmente se tem por um grande artista, mas o cinema que fazem já não tem nada a ver com o do Manoel. Naquela altura, foi muito importante um cinema em que a palavra era também muito importante. Isso também foi um factor de ligação entre mim e ele. Porque tenho formação em estudos literários e linguísticos. Foi um encontro muito importante, quando me convidou e comecei a trabalhar com ele.

O Manoel tinha um pudor gigantesco nas relações humanas. Muito poucas vezes o vi partilhar questões mais íntimas, aspectos mais delicados ou sobre os quais não se sentia seguro. Era um homem que gostava da dúvida. Basta olhar para os filmes dele para se perceber que está permanentemente à procura de uma certeza sobre a vida. Sobre a existência humana, sobre a relação com alguma coisa de transcendente, com aquilo que se costuma chamar deus. Os filmes dele são essa busca permanente. Não um filme em especial, mas todos, em sequência. É como se fosse a própria actividade de pensar, de reflectir sobre a vida e tentar descobrir através da câmara. É o trajecto dele, a vida dele, através do cinema.

Nunca tive uma grande intimidade com ele, porque ele tinha sempre um grande respeito pelas outras pessoas, e não era só comigo. No sentido em que eu sou eu, você é você, em que você pensa o que tem que pensar; eu penso o que tenho que pensar. O interessante é que, quer a gente se oponha, quer esteja de acordo, fá-lo sempre como pessoas adultas. Foi sempre assim.

Mas o Manoel era uma pessoa extremamente afectiva. Percebeu que eu tinha por ele uma amizade pessoal enorme. Muitas vezes o vim visitar, e as nossas conversas iam mais longe. Tocavam pontos que tinham a ver, de facto, com o que se pensa sobre estar vivo. Às vezes, era eu que ficava muito tempo à espera, sem dizer nada. Mas depois, de repente, a conversa começava a fluir, e ele dizia coisas espantosas, duma reflexão profundíssima, e sempre muito curioso sobre o que eu pensaria sobre os mesmos assuntos.

Era evidente que isso me dava uma grande satisfação, e percebi que ele tinha também um respeito por mim muito grande. Quando foi a atribuição do Prémio Pessoa [2005], fiquei de boca aberta quando vejo o Manoel a entrar pela sala dentro. Foi a Lisboa de propósito para estar presente na atribuição. Como se tivesse muito orgulho em que eu tivesse uma existência separada da dele.

Isso também foi muito estimulante. Mas não quer dizer que ele gostasse tanto dos espectáculos que eu fazia como eu gostava dos filmes que ele fazia. Ele foi ver a Cornucópia muitas vezes — não foi mais vezes, por causa dos seus problemas de surdez. E das poucas observações que me fez, mas que me ficaram sempre na cabeça, porque sempre dei muita importância ao que ele pensava, este exemplo: ‘Tem efeitos a mais e, no teatro, não é preciso nada; basta ter um actor em cena’. São coisas que, no fundo, tocam também em convicções profundas da minha parte, mas que a gente nunca tem coragem de assumir com esta clareza, com esta radicalidade."

Bons renascimentos!



Boas ressurreições!

Um corpo que resolve ultrapassar morte e vive, que ultrapassa limites de tempo e espaço e resolve estar aqui: deixemo-lo entrar!

Foi posto numa cruz e é sempre recordado como elemento de Amor, haverá coisa mais bonita que relembrar dia a dia, mês a mês, ano a ano uma vida!?

Começar de novo assente nas bases e alicerces criadas/os!

Paremos e olhemos as caras a sorrir por existir.

Contemplemos cada uma frontalmente, com coragem!

Apreciemos e aprendamos essa continuidade de estar aqui de novo, dêem as mãos, apertam-nas.

Pensemos nos que não podem estar fisicamente mas estão no pensamento, no coração e na alma!

Há muitas formas de ser e existir.

A física e carnal será só a mais óbvia, existir nas suas mais variadas formas não é fácil mas se fosse fácil não tinha tanta piada/graça.

É bonito juntarmo-nos à volta de uma mesa e de alimentos cozinhados com e em amor.

A gente vai continuar!

Este momento é para parar, recuperar e pensar como podemos melhorar-nos uns aos outros.

Há cuidados a ter uns com os outros.

Gente que cuida e que é cuidada.

Todos temos o nosso espaço e momento.

A História nunca pode ser travada, dela somos feitos: aqui, ali e por aí, hoje, ontem, amanhã e sempre!

Boa páscoa…

Estamos juntos!

03 abril 2015

Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...





falaram-me (num grupo que sente que vive, pelos seus problemas e doenças, aparte dela) na sociedade 'normal' vincando diferenças e limitações por oposição como se fôssemos adversários, somos da mesma equipa conjunta!

apeteceu-me explicar zangado que todos somos partes dela e todos temos limitações.

todos?

não gosto de comparações.

a diferença não é melhor nem pior, não quero ser nenhum outro, gosto de ser eu com meus defeitos, qualidades e feitio; gosto muito de existir e ser tudo sempre novo mas assente nas coisas que vêm da História!

estamos todos a crescer sem pressas, nem vagares ao nosso ritmo!

as pedras da vida são mais utensílios que estorvo.

Eu contigo



Eu Contigo

Sérgio Godinho

Eu, contigo
eu consigo
fazer o que digo
Eu, contigo
eu não cobro
eu não pago
e eu não devo
Devo dizer-te ao ouvido
eu sem ti
não tem sentido
tem sido
(devo dizer-te ao ouvido)
bem bom
bem bom bem bom
bem mais
do que o que é bom
bem bom bem bom

'adeus Manoel' por Augusto Miguel Seabra



Se qualquer morte é sempre uma perda e, mesmo quando podia ser expectável por diversos motivos, ainda assim é muitas vezes um choque, o desaparecimento de Manoel de Oliveira é uma perda irreparável, daquelas que deixam um vazio imenso.

Sim, tínhamos presente que ele tinha 106 anos – e, derradeira ocasião pública, todos o aplaudimos e prestamos tributo a 11 de Dezembro passado, dia desse aniversário, a força e obstinação do Manoel em querer continuar a filmar eram de tal ordem que chegávamos a suspeitar que se tinha libertado da lei da morte e tornado no Cineasta Eterno. Não, também ele era afinal um mortal, mesmo que, como poucos artistas – e não apenas cineastas – deixe uma obra e um legado que perdurará.
Ainda assim o choque é imenso e a circunstância é tanto mais difícil quando em 12 dias perdemos – "perdemos", 1ª pessoa do plural, friso – os dois Mestres ímpares da criação artística em Portugal, o Herberto e o Manoel, tão diferentes e contudo aproximáveis no paralelismo das absolutas singulares, e na irredutível integridade do seu ofício.

E o choque é grande, muito grande, quando se perde alguém com o qual se teve o privilégio de conviver durante 35 anos, por vezes partilhando os mais inusitados momentos, como me sucedeu com Manoel de Oliveira.

Claro que ter realizado filmes até aos 105 anos faz por si só de Oliveira um caso único na história do cinema. Mas recordá-lo apenas por isso, ou mesmo sobretudo por isso, é tremendamente redutor e injusto. Não é preciso gostar de todos os seus filmes (e há alguns, como a Divina Comédia e Um Filme Falado, de que não gosto nada) para ainda assim reconhecer, sem a menor das dúvidas, que foi um dos autores maiores da arte cinematográfica.

Mas o seu percurso de mais de 85 anos de filmes foi difícil, problemático, pleno de peripécias, de controvérsias e também de lugares-comuns, que perduram. Ainda há pouco, depois da notícia da morte, alguém dizia que achava Oliveira “um chato” e que só gostava de Aniki-Bóbó.

Pois é, mas esse filme, hoje um clássico incontestável da cinematografia portuguesa, foi um desastre comercial, quando da estreia em 1942. De resto já havia o precedente do 1º filme, Douro Faina Fluvial, tumultuosamente recebido, pateado mesmo, quando da 1ª apresentação em 1931, num Congresso Internacional de Crítica em Lisboa, o que de resto deixou perplexos alguns influentes participantes estrangeiros que, antes pelo contrário, aclamaram o filme.

Esses dois factos tornar-se-iam aliás, retrospectivamente, na proto-história de estereótipo daninho e perene, que se consagrou com a polémica recepção a O Passado e o Presente – regresso do autor à ficção, depois de um lapso forçado de 30 anos, desde Aniki-Bóbó, ocasião em que João César Monteiro escreveu que “Oliveira é um cineasta demasiado grande para um país tão pequeno”, e sobretudo com a catastrófica exibição televisiva em série de quatro episódios, na RTP/1, em Outubro/Novembro de 1978, de Amor de Perdição, que desencadeou uma rejeição, animosidade e mesmo ira sem precedentes (e aliás a níveis que nunca mais se voltaram a verificar), a que sucedeu a aclamação crítica internacional do filme propriamente dito, sobretudo com a estreia em França, consagrando o tal pernicioso lugar-comum, o de que Oliveira era “um cineasta incompreendido em Portugal e aclamado na Europa”, o que, diga-se, tendo base factual nos episódios referidos, é largamente injusto e parcial.

E já que falamos em factos, então aponte-se um, que desmente o tal lugar-comum: depois da clamorosa rejeição de Amor de Perdição, o filme seguinte, Francisca – que aliás pareceu ter firmado um “consenso crítico” sobre Oliveira, mas já lá iremos – teve 70.000 espectadores em Portugal, 70.000, o que é assombroso para uma obra tão difícil e de 3h, tal como depois 'Non', ou a Vã Glória de Mandar foi outro sucesso público – portanto, quanto ao “incompreendido em Portugal”, estamos esclarecidos, ao menos que o lugar-comum tem de ser muito matizado.

Claro que houve outros filmes que correram pior, alguns até bastante mal, o que de resto em nada perturbava Oliveira, que chegou a dizer ser “indiferente que um filme tenha 1 espectador”. Claro que tal declaração provocou a acrescida ira dos muitos detractores – incluindo aliás ex-defensores incondicionais – que com os anos se foram acumulando, sobretudo no próprio meio cinematográfico: “veja-se isto, um tipo que está sempre a receber subsídios públicos, enquanto nós temos que esperar e quantas vezes estar sujeitos à rejeição de projectos, e se está nas tintas para o público português!”.

O estatuto de “excepção” de Oliveira tinha de facto sido politicamente consagrado desde 1980, sendo Secretário de Estado da Cultura Vasco Pulido Valente, depois da aclamação internacional de Amor de Perdição – Oliveira tornava-se num “valor nacional” – e as reacções de inveja e animosidade que suscitou foram inumeráveis ao longo dos anos.

O seu destaque fez entendê-lo muitas vezes como o Pai e o Mestre, quando de facto e em rigor, tendo ele aberto as portas da difusão internacional ao cinema português, foi sim um autor inconfundível e inimitável, tido às vezes no exterior como o expoente de uma pretensa “escola portuguesa”, quando antes não há o mais mínimo dos traços de uma “escola Oliveira” no cinema português. Mas o tal estatuto de “excepção” e as polémicas consequentes levaram sim muitas vezes, e virulentamente, à noção de um “Pai Tirano” cuja primazia “impedia” que outros filmassem.

Mas sobre estes estereótipos enfadonhamente repetidos há ainda alguns pontos a rebater.

Por exemplo sobre isso de “chato”. Certamente que alguns filmes de Oliveira são “difíceis” e exigem grande disponibilidade e concentração, caso do magistral O Dia do Desespero, sobre o suicídio de Camilo. Mas a adjectivação radica-se ainda no trauma do Amor de Perdição em 1978. Posso perguntar porque é que não têm pejo em repetir isso do “chato” pessoas que obviamente nem se deram ao esforço, nos últimos 35 anos, de ir ver um filme de Oliveira?!

Com o “chato” vai de par outro estereótipo, o dos “planos longos, infindáveis”, por exemplo repetido à exaustão pelo humorista Herman José (é uma ironia, mas sempre me pareceu que em A Caixa há um tremendo erro de casting: o papel do habitual Luis Miguel Cintra assentaria que nem uma luva sim a Herman José). Ora bem, quando em 1981 fizemos, o José Nascimento e eu, um documentário para a RTP/1 sobre e com Manoel de Oliveira, que na altura tinha concluído Francisca, ele dizia “o cinema é a fixação audiovisual de uma representação teatral” (como também algo tão desconcertante como “a minha técnica cinematográfica foi muito influenciada pela cobertura televisiva dos Jogos Olímpicos de Tóquio”) e foi nesse período que sim os seus filmes patenteavam a mestria de longos planos-sequências.

Mas logo depois as coisas começaram a mudar, e então O Meu Caso (1986) é um decisivo filme-charneira e de viragem, em que Oliveira como que regressa às origens, e a Douro, Faina Fluvial, com um montagem trabalhada e uma sucessão rápida de planos, por vezes mesmo em clássico campo/contracampo, quais longos planos fixos, qual quê!

E quanto a essa “indiferença” perante o número de espectadores de um filme, há que esclarecer bem: de facto em nada se preocupava com números e bilheteiras, mas que os seus filmes fossem estreados, e estreados no país, dados a conhecer a um público português, mesmo que depois só houvesse um espectador (era uma boutade, claro) era para ele um ponto de honra e uma das obstinações da sua integridade artística; teve aliás um desgosto com o facto do longuíssimo Soulier de Satin (quase 7h!) não ter tido estreia em sala.

Com isto se liga outro aspecto, capital, que leva aliás a seriamente matizar essa coisa do “cineasta incompreendido em Portugal e aclamado na Europa”. Ora, há que ter em conta que o Manoel se considerava profundamente “português” e “cineasta português”.

De ‘Non’, ou a Vã Glória de Mandar, obra de reflexão sobre a história portuguesa, pela perspectiva das derrotas, como nenhuma outra há – no cinema ou noutros campos – ao derradeiro O Velho do Restelo, passando por Palavra e Utopia, O Quinto Império – Ontem Como Hoje ou Painéis de São Vicente Oliveira não deixou de “indagar Portugal” e, digamos, as suas vicissitudes e “destino”.

Mas, a propósito, há um outro aspecto a salientar, que não é usualmente referido: foi expoente e uma específica cultura, do Porto e nortenha, vincadamente local mas também cosmopolita. Ao longo do tempo ele foi filmando autores dessa cultura, Régio, Camilo, Agustina, até enfim, os que faltavam, Raul Brandão na última longa-metragem, O Gebo e a Sombra, e, de modo explícito (porque implicitamente a sua influência já pairava em filmes anteriores) Teixeira de Pascoaes no derradeiro O Velho do Restelo.

Este facto é aliás por si só extraordinário: dir-se-ia que, já depois dos 100 anos, e mesmo que deixando projectos não realizados como O Retrato de Dorian Gray ou A Igreja do Diabo de Machado de Assis, teve a energia e clarividência que completar os projectos longamente maturados que lhe faltava realizar!

Para quem bem conhecia Oliveira, esses dois filmes foram também perturbantes premonições. De ‘Non’, em 1990, se disse que era o seu “filme-testamento”; pois bem, só longas-metragens ainda fez mais 21! De resto, ele próprio fez declarações e estabeleceu metas que, felizmente, acabaram por não se cumprir: por exemplo, quando da rodagem de A Divina Comédia ele disse(-me) que o seu “último filme” seria O Dia do Desespero (o “último filme” concluir-se-ia então com um suicídio!) mas acabou por o fazer logo depois, só a seguir tendo havido o que seria “o filme antes do último”, “a nova Bovary”, isto é, Vale Abraão.

Mas com O Gebo e a Sombra saí da projeção desfeito, arrasado por tal magistralidade, mas também por uma clara percepção testamentária, então sim, e voltei-me para o produtor Luís Urbano e disse-lhe “este é mesmo o último”. E então O Velho do Restelo era, é, clarissimamente a palavra final.

Mas há em toda a história do cinema outro autor assim que com tão grande persistência tenho insistido e conseguido concluir o que de fundamental se propunha?!

Insistiu-se muito em que Oliveira em imprevisível e imprevisto, escamoteando quanto foram acalentados e planeados projectos que, como ‘Non’ e O Velho do Restelo, demoraram afinal mais de 10 anos a ser concretizados.

Claro que no seu desejo de filmar sem cessar, e como alguns processos se atrasassem, outros surgiam repentinamente.

Ao longo de 35 anos não me faltaram episódios memoráveis com o Manoel, desde o susto sem precedentes que tive no “lugar do morto” numa ida ao Douro, e, com mais de 70 anos, o Manoel, que fora corredor de automóveis (é como galã com um potente automóvel que ele surge em A Canção de Lisboa, em 1933!, himself, sem ser uma personagem) continuava a carregar no acelerador, a um dia, numa pastelaria ao pé de sua casa em que ele me começou a contar o projecto de Belle Toujours, retomando a Belle de Jour de Buñuel, com as mesmas personagens e actores, Catherine Deneuve (acabaria por ser Bulle Ogier) e Michel Piccoli, e esse intento de alguém, um mestre do cinema, dar continuação mais de 30 anos volvidos a uma obra-prima de outro mestre, pareceu-me de uma ousadia e ineditismo tais que achei melhor não transmitir a mais ninguém o que o Manoel inesperadamente me contara.

A situação mais delirante ocorreu em, pasme-se, Telluride, no alto das Montanhas Rochosas. Na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes nesse ano de 1993 Vale Abraão fora aclamado, numa ovação de pé, de mais de 10 minutos, coisa sem precedentes. Todos os festivais se precipitaram para programar o filme e Tom Luddy, director de Telluride, pediu-me se conseguia levar eu próprio, à mão, uma cópia do Douro, Faina Fluvial, e lá fui eu, de Lisboa a Nova Iorque, de Nova Iorque a Denver, de Denver a Telluride, carregado com as latas para se fazer uma homenagem-surpresa a Oliveira. Telluride sendo um festival muito particular, mesmo de “comunidade cinéfila”, havia uns tantos realizadores presentes, Wim Wenders, John Boorman, Bertrand Tavernier, etc, e Tavernier, cinéfilo inveterado como poucos, e que não conhecia o filme, exclamava no final “mas isto é muito melhor que o Ruttmann!”, que Oliveira sempre reclamara como modelo.

No dia seguinte fomos tomar qualquer coisa e eis senão quando o Manoel, dando continuamente gargalhadas, me começou a narrar em detalhe o seu próximo filme que seria A Caixa, e de repente eu dei-me conta do inusitado da situação: parecia que tínhamos viajado no tempo, porque de facto estávamos num saloon do far-west e o Manoel contava-me desopiladamente o seu inesperado projecto de próximo filme.

Já que refiro uma situação ocorrida em tais paragens, será que se lembram que um ícone americano, Clint Eastwood, fez questão de estar presente na homenagem a Oliveira em Cannes, quando do 100º aniversário, e ir expressamente saudá-lo? É preciso esperar pelo In Memoriam nos próximos Óscares em que de certeza Oliveira figurará, para então sim, ter a noção de que ele era mundialmente reconhecido?

Contudo citei A Caixa como exemplo dos projectos imprevistos de Oliveira. Aconteceu também haver filmes que tomaram rumos imprevistos. Por exemplo Le Soulier de Satin. Primeiro foi filmada, em 35mm, a quarta e última jornada, que de facto é um apêndice à "Tetralogia dos Amores Frustrados", e à magnificente sucessão Benilde ou A Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca, encerrado até num certo auto-academismo. Depois Oliveira esteve uns meses no estúdio, rodando em 16mm as três outras jornadas, e manifestam-se entusiasmou-se numa fúria criativa, regurgitando de invenções num de todo inesperado regresso a Méliès.

Mais incrível ainda, e distintivo de Oliveira, são planos inesperados e contracampos surpreendentes. Vejamos em Aniki-Bóbó Teresinha e Carlitos que olham para a montra da Loja das Tentações, e o plano seguinte sobre eles vem de dentro, como se fosse o olhar da boneca! Ou em Francisca, quando José Augusto está no sofá acariciado pela sua amante Raquel e o contracampo vem de dentro da lareira! Ou em Je Rentre à la Maison, quando do exterior Piccoli contempla a montra de uma sapataria, ficamos na expectativa de que o plano seguinte incida especificamente num par de sapatos mas não, é da parte de dentro da montra, com ele dentro da loja já a comprar os sapatos. Esta capacidade de surpreender, de não nos deixar adivinhar o plano seguinte, e isso, de que Oliveira era capaz, é sinal distintivo só dos maiores cineastas.

Definir “o estilo de Oliveira” é todavia assaz complexo, senão infrutífero. Proporia ainda assim duas perspectivas.

O 1º parafraseando o título de um filme seu, colhido em Agustina, O Princípio da Incerteza, é o que designaria por “Princípio da Inquietação”, e mesmo de alguma angústia claustrofóbica. Logo em Douro há de facto um espaço fechado, com o guarda que vigia a barra, e a perturbação da carroça descontrolada e o pavor da mulher; em Aniki-Bóbó, filme aliás, sob a aparência doce, pleno de medos, há o miúdo que escorrega na ravina; há o indescritível e extraordinário A Caça; e depois, com algumas raras excepções documentais, essa inquietação é um factor recorrente – Inquietude se intitula de resto um filme.

O 2º é o mais complexo mas também certamente o mas singular. “A alma é um vício” diz Fanny em Francisca, frase que aliás é emblemática quer de Agustina, quer de Oliveira. Ora ele foi, e de que maneira, um cineasta das tentações (e voltamos à Loja das Tentações do Aniki) mas também o de um propósito de “filmar o infilmável”, a alma, os fantasmas do além, como esse entidade misteriosa que engravida Benilde, a Virgem-Mãe, o alucinante final de Francisca (e, a meu ver, entre várias obras-primas, esses são os dois filmes máximos), ou, crucial, o espírito que levanta do corpo morto de Angélica, projecto crucial que acabou por ser concretizado ao fim de muitos anos – e, em paralelo, de “explicar o inexplicável”, como o próprio disse, esse “mistério” que seria Portugal.

E estas aproximações a um Além eram as de um grande cineasta religioso, a par de um Dreyer, um Bresson, um Bergman.

Era Manoel de Oliveira (1908-2015), um dos autores maiores da arte cinematográfica.


Adeus, Manoel.