Pela Clara Ferreira Alves no Sábado, 22 de Novembro de 2014
Num caso de tanta gravidade como este, o da suspeita de
crimes graves e detenção de um ex-primeiro-ministro do Partido
Socialista, verifico imediatamente que o processo foi grosseiramente
violado. Praticou-se, já, o linchamento público. Como?
1) Detendo o suspeito numa operação de coboiada
cinemática, parecida com as de Carlos Cruz e Duarte Lima, a uma hora
noturna e tardia, num aeroporto, quando não havia suspeita de fuga, pelo
contrário. O suspeito chegava a Portugal. Porque não convocá-lo durante
o dia para interrogatório ou levá-lo de casa para detenção?
2) Convidou-se uma cadeia de televisão a filmar o acontecimento. Inacreditável.
3) Deram-se elementos que, a serem verdadeiros, deviam
constar em segredo de Justiça. Deram-se a dois jornais sensacionalistas,
o "Correio de Manhã" e o "Sol", que nada fizeram para apurar o que quer
que seja. Nem tal trabalho judicial lhes competia. Ou seja, a Justiça
cometeu o crime de violação do segredo de Justiça ou pior, de
manipulação do caso, que posso legitimamente suspeitar ser manipulação
política dadas as simpatias dos ditos jornais pelo regime no poder.
Suspeito, apenas. Tenho esse direito.
4) Leio, pela mão da jornalista Felícia Cabrita, no
site do "Sol", pouco passava da hora da detenção, que Sócrates (entre
outros crimes graves) acumulou 20 milhões de euros ilícitos enquanto era
primeiro-ministro. Alta corrupção no cargo. Milhões colocados numa
conta secreta na Suíça. Uma acusação brutal que é dada como certa.
Descrita como transitada em julgado. Base factual? Fontes? Cuidado no
balanço das fontes, argumentos e contra-argumentos? Enunciado mínimo dos
cuidados deontológicos de checking e fact-checking? Nada. Apenas "o Sol
apurou junto de investigadores". O "Sol" não tem editores. Tem
denúncias. Violações de segredo de Justiça. Certezas. E comenta a
notícia chamando "trituradora" de dinheiro aos bolsos de Sócrates.
Inacreditável.
5) Verificamos apenas, num estilo canhestro a que a
biógrafa de Passos Coelho nos habituou (caso Casa Pia, entre outros) que
a notícia sai como confirmada e sustentada. Se o Watergate tivesse sido
assim conduzido, Nixon teria ido preso antes de se saber se era culpado
ou inocente. No jornalismo, como na justiça, há um processo e uma
ética. Não neste jornalismo.
6) Neste momento, não sei nem posso saber se Sócrates é
inocente ou culpado. Até prova em contrário é inocente. In dubio pro
reo. A base de todo o Direito Penal.
7) Espero pelo processo e exijo, como cidadã, que seja
cumprido à risca. Não foi, até agora. Nem neste caso nem noutros. Isto
assusta-me. Como me assustou no caso Casa Pia. Esta Justiça de terceiro
mundo aterroriza-me. Isto não acontece num país civilizado com jornais
civilizados. Isto levanta-me suspeitas legítimas sobre o processo e a
Justiça, e neste caso, dada a gravidade e ataque ao regime que ele
representa, a Justiça ou age perfeitamente ou não é Justiça.
8) Verifico a coincidência temporal com o Congresso do
PS. Verifico apenas. Não suspeito. Aponto. E recordo que há pouco tempo
um rumor semelhante, detenção no aeroporto à chegada de Paris, correu
numa festa de embaixada onde eu estava presente. Uma história igual. Por
alturas da suspeita de envolvimento de José Sócrates no caso Monte
Branco. Aponto a coincidência. Há um comunicado da Procuradoria a negar a
ligação deste caso ao caso Monte Branco. A Justiça desmente as suas
violações do segredo de Justiça. Aponto.
9) E não, repito, não gosto de José Sócrates. Nem
desgosto. Sou indiferente à personagem e, penso, a personagem não tem
por mim a menor simpatia depois da entrevista que lhe fiz no Expresso
há um ano. Não nos cumprimentamos. Não sou amiga nem admiradora. É
bizarro ter de fazer este ponto deslocado e sentimental mas sei donde e
como partem as acusações de "socratismo" em Portugal.
10) As minhas dúvidas são as de uma cidadã que leu com
atenção os livros de Direito. E que, por isso mesmo, acha que a única
coisa que a Justiça tem a fazer é dar uma conferência de imprensa onde
todos, jornalistas, possamos estar presentes e fazer as perguntas em vez
de deixar escorregar acusações não provadas para o "Correio da Manhã" e
o "Sol". E quejandos. Não confio nestes tabloides para me informarem.
Exijo uma conferência de imprensa. Tenho esse direito. Vivo num Estado
de Direito.
11) Há em Portugal bom jornalismo. Compete-lhe impedir
que, mais uma vez, as nossas liberdades sejam atropeladas pelo mau
jornalismo e a manipulação política.
12) Vou seguir este processo com atenção. Muita. Ou ele
é perfeito, repito, ou é a Justiça que se afundará definitivamente no
justicialismo. Na vingança. No abuso de poder. Na proteção própria. O
teste é maior para a Justiça porque é o teste do regime democrático. E
este é mais importante que os crimes atribuídos a quem quer que seja.
Não quero que um dia, como no poema falsamente atribuído a Brecht,
venham por mim e não haja ninguém para falar por mim. A minha liberdade,
a liberdade dos portugueses, é mais importante que o descrédito da
Justiça. A Justiça reforma-se. A liberdade perde-se. E com ela a
democracia.