26 dezembro 2015

Os Pobrezinhos (de António de Lobo Antunes)

Literatura Aqui ao minuto 22.45 este texto muito bem lido (programa inteiro muito giro :)

 Os Pobrezinhos (de António de Lobo Antunes)

 'Na minha família, os animais domésticos não eram cães, nem gatos, nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeo
 
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim - e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"

23 dezembro 2015

UMA PEQUENINA LUZ, Jorge de Sena


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha

Jorge de Sena, Fidelidade (1958)

20 dezembro 2015

venham Sorrisos!

Antes de tudo: BOM NATAL!


Gostava de dar Otimismo, não se pode oferecer mas podemos valorizá-lo: gosto de pessoas optimistas e têm o condão de tornar o mundo mais leve e exigente. 


Tem o seu quê de magia: encontrar Otimismo não será o mais óbvio e terá até alguma ponta de ingenuidade e as pessoas optimistas vivem num mundo pequenino e particular com o desafio de ser felizes.


Há quem diga ser irreal mas haverá tantas realidades como pessoas e a nossa escolhemos nós; é difícil e exigente tornar-nos melhores mas ninguém gosta de jogos fáceis.



Queremos melhorar o mundo: somos contagiados pelas pessoas com quem vivemos e delas recebemos as suas características.


Perguntam-me razões válidas terei para viver neste ingénuo otimismo, 12 razões digo e muitas mais vêm à cabeça:


1.        Tanta coisa… basta olhar à nossa volta, todo o nascimento;


2.         Tanto espaço e Tempo recebido e a transmitir melhor...   

3.        Ouvirmos, cheirarmos, sentirmos, saborearmos; O olhar de cada pessoa;


4.        Todas as palavras, a linguagem falada e escrita;


5.        Tudo ensinado/passado de geração em geração;


6.        A sociedade, está tudo muito bem esgalhada, foi tudo genialmente inventado: cada Pessoa, cada movimento do corpo a memória, o aprender e ensinar e etecetera, tudo é surpreendente, é GENIAL! 


7.        Fazes tudo melhor sempre com calma e leveza, com tranquilidade; passar bem-estar e receber sentimentos bons é o desejo de toda a gente; é exigente!


8.        Gente forte que vive à nossa volta connosco; gente em quem confio e que pode confiar em mim; nesta casa a gente boa é maioria!


9.        Tanta gente no mundo existe! Tantos pensamentos e ideias, tantas acções e vontades, tanto gosto, tanto carinho e Amor...


10.      Um mundo cheio de Optimistas estará mais perto de ser óptimo. E assim, façamos a nossa parte!


11.      É infantil, ingénuo e falível, talvez, tudo coisas de que gosto;


12.      Por cada bom momento que criemos, muitos bons momentos se irão encadear.


A vontade e a esperança são o que nos permite continuar a melhorar juntos.


13 dezembro 2015

a Amizade Educa

Poucos artistas nascem já feitos, inteiros, completos. Rui Chafes sim. É um caso raro. Em 1992, assinava as suas primeiras exposições quando a revista K lhe dedicou um artigo de título lapidar: “Este homem é um génio.” Chafes tinha apenas 26 anos. Tem 49 agora que recebe o Prémio Pessoa, o mais importante prémio nacional de consagração, o único que distingue protagonistas de várias áreas das ciências e humanidades.

Em 29 edições, é apenas o segundo artista plástico contemplado. O primeiro do último quarto de século, desde 1990, quando foi atribuído a Menez já perto do fim da vida da pintora (1926-1995).
O júri, liderado pelo presidente do grupo Impresa, Francisco Pinto Balsemão, integrou o economista Álvaro Nascimento, o sociólogo António Barreto, a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves, o administrador Diogo Lucena, o arquitecto Eduardo Souto de Moura, o neurocirurgião João Lobo Antunes, o historiador da arte José Luís Porfírio, as cientistas Maria Manuel Mota e Maria de Sousa, o ex-presidente Mário Soares, o jurista Miguel Veiga, o presidente executivo da Impresa, Pedro Norton, o engenheiro Rui Magalhães Baião, o musicólogo Rui Vieira Nery e o filósofo Viriato Soromenho-Marques.

Chafes "consegue o feito raro de produzir uma obra simultaneamente sem tempo e do seu tempo", disse esta sexta-feira Francisco Pinto Balsemão no Palácio de Seteais, em Sintra, ao anunciar o prémio, no valor de 60 mil euros atribuídos pelo semanário Expresso com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos. Ao PÚBLICO, Chafes reagia pouco depois: “É uma sorte poder fazer um trabalho ao longo de tantos anos e ele ter algum tipo de significado e suscitar o interesse e o reconhecimento de uma comunidade. Não estou certo de o merecer nem de ter a importância de outras pessoas que o receberam, mas é uma alegria e uma grande responsabilidade.”
A responsabilidade, diz o escultor, radica no facto de quando um prémio transversal como o Pessoa é entregue a um artista a distinção se perfilar não apenas como reconhecimento de um percurso individual, mas constituir um alerta maior, “uma chamada de atenção para a própria existência da arte no mundo”.

Grande parte da actividade artística, diz Chafes, destina-se hoje a alimentar o mercado. “É legítimo.” Mas há outros timbres de intencionalidade, gestos que entendem ter “um papel ético no mundo”. “O meu é levantar questões, fazer perguntas e pôr as pessoas à procura de respostas no sentido da essência daquilo a que chamamos vida e existir.”

O bom trabalho artístico, conclui o escultor, “põe sempre questões sobre o essencial”: “Tem a ver com descarnar, ir ao caroço.”

Há menos de dois anos dizia ao PÚBLICO: “Não me interessa pertencer a um tempo de brilhantes e coloridos despojos de uma irreparável perda e confusão. Não quero que o meu trabalho faça parte desta vertigem de ignorância e consumismo, desta dessacralização do mundo e do milagre da vida. Não se trata de alheamento do tempo presente: é por estar bastante informado sobre o tempo que me coube viver que não me quero refém dele. Acredito, como os antigos, que deve haver um significado único e superior por detrás de cada erva, flor, nuvem que passa ou criança que nasce. Para mim, a arte deve ser o espelho dessa íntima relação, desse encantamento, dessa magia. Estou farto da lógica horizontal que nos impõe um olhar conformado sobre a banalização do mundo.”

Na obra de Chafes, esta perspectiva tem-se traduzido numa dedicação exclusiva ao trabalho do ferro – uma das singularidades primeiras da sua marca autoral.

Não há, nunca houve muitos artistas a trabalhar sistematicamente e em exclusividade o ferro. Nasceu com a escultura modernista a essência do que, na segunda metade do século XX, seria mais frequentemente procurado no trabalho com este material: a monumentalidade, uma reflexão sobre o peso e a densidade, sobre a natureza e o poder de uma presença supostamente perene, sobre o seu impacto tanto na paisagem como no humano.

Não foi esta a via de todo o minimalismo norte-americano, o grande momento da utilização do ferro na contemporaneidade, mas é a via do mais emblemático dos artistas a trabalhar hoje o ferro: o norte-americano Richard Serra. Ora, pode dizer-se que Chafes traça um caminho diametralmente oposto ao de Serra: em vez da exibição da matéria, o seu apagamento, em vez do peso, a extrema leveza, em vez da densidade, a fluidez.

Quase sempre pintadas de negro, as esculturas de Chafes parecem em geral esculpidas no ar. Normalmente, tocam o chão em um, dois pontos. Dependuram-se de paredes e cantos de salas, varandas, campanários, árvores. No ponto mais absoluto da sua leveza, parecem flutuar como grandes sóis extintos, como luas ou como balões. Podem pesar centenas de quilos que, ainda assim, parecem desvanecer-se.

Com uma aura frequente de anacronismo antigo, todas vivem de um misto de erotismo e belicismo, de sensualidade e violência, todas se afiguram melancólicas, mas também extáticas, precisas e imprecisas, vagas e concretas, secretistas, fantásticas, inquietantes, subversivas, anticlássicas e anti-racionalistas, individualistas, idealizadas e idealistas. Muitas sugerem prisões, mas também sempre a possibilidade de uma liberdade absoluta para o humano.

Chafes já as descreveu como momentos “de vida triunfante, na qual tudo, tanto o bem como o mal, se encontra igualmente divinizado”. Será por essa ligação ao coração pulsante das grandes intensidades que parecem muitas vezes deslocadas quando vistas em museus ou galerias. Trazem mais naturalmente a ressonância de igrejas e templos, jardins, florestas, montanhas, falésias e praias.

Chafes costuma enfatizar o lamento que existe na sua obra pelo corte que o Modernismo impôs na “relação essencial entre lugar, sentido e obra de arte”: “Noutro tempo, as obras nasciam e viviam no local para onde tinham sido pensadas e realizadas, esses espaços frequentados por homens e mulheres à procura de uma voz: as igrejas, os templos, a Natureza, a paisagem. Hoje a maior parte da arte é constituída por pobres objectos órfãos, que não têm onde cair mortos, que andam de mão em mão até acabarem colocados numa redoma de vidro, ou no lixo.”

Chafes fala “da arquitectura do coração, da alma, da memória, do medo, da esperança, do silêncio e recolhimento das pessoas”. Em tempos como os actuais, a arte, diz ele, torna-se “um duro exercício de resistência onde o artista permanece na sombra e, através do seu trabalho, faz dela o seu dia mais luminoso, caminhando no fio de uma afiada lâmina, com alguns outros discretos companheiros dessa solidão".

Em Fevereiro do ano passado, aquando da inauguração da grande antológica O Peso do Paraíso, que juntou no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian cerca de 100 obras de 25 anos do seu percurso, Isabel Carlos, que assinou a curadoria, apontava a imensa singularidade deste artista: “Quando vemos um Rui Chafes, sabemos que só pode ser um Rui Chafes. É um universo próprio, inconfundível.”
Nessa altura, Chafes dizia: “Espero começar a compreender o que fiz e o que faço quando tiver 80 anos. Ou mais. Parece que o Hokusai, o grande mestre japonês, tinha esta mesma consciência: dizia que tudo o que tinha produzido antes dos 70 anos não era digno de atenção. Aos 75 teria começado a aprender algumas coisas, aos 80 teria feito alguns progressos, aos 90 teria penetrado o mistério das coisas, aos 100 teria alcançado uma etapa maravilhosa e aos 110 tudo o que faria, fosse um ponto ou uma linha, estaria vivo. É assim que eu penso também.”

08 dezembro 2015

a escrita precisa de exercício e treino


reli isto depois de um pouco de sala parental e está BEATO, hrumpf... estou com excesso de 'Homens da Fé'... :)

Meu bom Blogue,

porque não escreves para nós? deixámos de ser importantes? passaram a exigência de dar boa música e literatura? entraste na equipa dos 'não tenho tempo'? não tens nada para escrever que interesse!? que mereça distracção das mil coisas que nos assediam tão mais interessantes!?  perdeste o gozo na escrita? 

NEM PARECE TEU...

estás aí!? resolveste assumir que preferes ser e estar noutros lados com outro tempo? já não queres brincar connosco porquê? :(

lembro-me de teres-me escrito isto há uns tempos: 
 
 não se nasce escritor, não é um Dom/jeito com que se nasce, requer trabalho. Não se começa a escrever e plim, sai um bom texto como por magia. 

Aliás, até é provável que nasça um mau texto se não estás habituado a escrever...

Não está inerente ao bem pensar e falar, gostar de ler e escrever. É preciso isso tudo mas prática, treino, tempo e dedicação, Muito gosto. Ao sermos lidos somos postos em causa, somos avaliados. É boa coisa e barata, é uma boa forma de falarmos connosco e, sobretudo ler-mo-nos, avaliarmos se o que dizes é bom ou mau.

Primeiro, começamos a escrever para nós, habitualmente, fazeres um diário, tornamos escrever uma coisa leve e que não mete medo e só então te expões, ganhas confiança/segurança e escreves para o outro: em qualquer caso, escrever é sempre um ato individual, escrevemos sozinhos e para nós.

depois, é engraçado como variamos consoante para quem escrevemos (não se faça psicologia daqui, há tanta coisa a influenciar como escreves...). 
 
Divertes-te, animas-te, ganhas valor e é uma prenda gira: dás de ti! 

Pensas melhor, contigo, conversas: falas e respondes-te, dás-te tempo.


Deixou de fazer sentido?





Marvin Gaye & Tammi Terrell - Ain't No Mountain High Enough

tens razão querido Amigo,

não exercitar a qualidade que temos é estúpido... e vai contra a minha ideia de que escrever não é um dom. qualquer um pode escrever bem, se treinar e gostar... exige trabalho e alguma dedicação, não é perder tempo, é canalizá-lo para outros objectivos/fins!

não escrevo para ser lido ou também, escreve-se antes de tudo para nós, por ser importante para nós, por gosto em pensar conversamos connosco...

vou retomar vir cá conversar convosco de vez em quando (diariamente ou de dois em dois dias, pelo menos...), penso e comunico melhor por escrito!

06 dezembro 2015

nunca se viu tudo: 'A história é sempre surpresa' por Pacheco Pereira a itálico


 que bom ver-te pelas costas: Ola!!!
 

Têm acompanhado as notícias aqui do burgo?



Da esquerda e do António Costa estarem no poder (favorecida pela comparação com o anterior governo que não me lembro de ter conhecido na minha longa história de 34 anos tanta vergonha), tempos giros, isto está a mudar, sente-se leveza no ar...

Talvez vá de avião...


 'O que hoje se passa em Portugal mostra como a história é sempre surpresa e é por isso que é inovadora, para o bem ou para o mal. 

A história do passado pode obedecer a critérios científicos, pode fornecer uma interpretação analítica consistente do que se passou e explicar por que razão se passou, mas não permite fazer uma “história” do futuro, não sustenta qualquer futurologia, nem qualquer das muitas variantes neomalthusianas que por aí circulam e que se destinam a justificar políticas do presente com pseudotendências a verificar no futuro. Nem a história, nem a sociologia, nem a economia permitem previsões de futurologia e o rastro de visões falhadas do futuro está um pouco por todo o lado. Mesmo as melhores utopias, quase sempre distopias, são tanto mais interessantes quanto são feitas a partir do presente e são, na sua melhor expressão, uma metáfora sobre o presente, como é o caso do 1984 de George Orwell. 

Vem isto a propósito de uma variante do “não há alternativa” que aí circula assente num discurso neomalthusiano sobre o futuro, baseado em má economia e numa política que nada tem que ver com a democracia. O futuro, eles sabem como vai ser, ou se seguem as “regras” da economia e da governação estabelecidas pelas troikas nacionais e da “Europa”, ou todos os cataclismos se vão abater sobre quem se “desviar”. A vulgata económica, repetida à saciedade por quase todos os jornalistas económicos, um instrumento essencial de suporte à ideologia do “não há alternativa”, é simples e envenena rapidamente os activistas dos comentários mais ou menos anónimos e os participantes nos fora que rádios e televisões produzem a um ritmo diário. Uma única escola da economia tornou-se tão dominante que deixou de ser uma “escola” para se tornar “a economia”, mesmo que, por ironia, a maioria dos mais recentes prémios Nobel da Economia como Stiglitz, Krugman e Angus Deaton tenham posições frontalmente contrárias a esta interpretação da economia. Aliás, perante a indiferença geral dos partidários do “economês”, Stiglitz veio dizer a Lisboa que era preciso cobrar mais impostos para investir e que a desigualdade era uma opção política. A desigualdade, por exemplo, não tem qualquer papel no discurso do “economês” e da política que o sustenta. Não importa, não interessa e é inevitável. 

Os governos, sejam conservadores, sejam socialistas, sejam o que forem, estão condenados a seguir a mesma política económica e social, e é essa política que define o “arco da governação”, o clube de partidos em que o voto dos eleitores serve para governar. O resto é um voto de segunda, tribunício e ineficaz, quase lúdico. Durante quatro anos em Portugal, só um punhado de pessoas que se contavam pelos dedos de uma mão é que resistiu a esta “inevitabilidade”, e mesmo os revoltados com a situação ficavam deprimidos com a falta de saídas previsíveis. 

Pois tenho novidades para vos dar, surpresa!, de repente, saímos e saímos com uma genuína ruptura. Voltemos à história. O que hoje se passa em Portugal mostra como a história é sempre surpresa e é por isso que é inovadora, para o bem ou para o mal. A maioria dessas surpresas é má, algumas muito más. Existe uma maldição, que passa por ser chinesa, embora tenha sido escrita por um inglês, e que diz: “Que vivas em tempos interessantes.” 

Vivemos hoje em Portugal esses ”tempos interessantes”, com todos os riscos inerentes. A quantidade de coisas que mudou nas últimas semanas criou esse carácter poiético da história, criador e carismático, o que também significa que a sua novidade traz ao mesmo tempo esperança e insegurança. Insisto: nada garante que o que se está a passar é, como dizem as pessoas, “para melhor”, mas apenas que é diferente. E essa diferença exactamente por ser genuína não pode ser prevista, e as suas consequências e “normalização” também não. Mas uma coisa é certa: exactamente porque é uma genuína alteração, uma mudança, as pontes com o passado foram cortadas e o caminho para trás é impossível. Isso não significa que as forças do passado não estejam cá connosco, ainda assarapantadas com o que aconteceu, mas não menos vivas e perigosas. “Que vivas tempos interessantes.” 

O que é que já mudou? Nos últimos meses, formou-se uma aliança, minimalista, débil, mas proactiva e aguerrida (o primeiro acto da coligação foi derrubar um governo) entre três partidos da esquerda, incluindo partidos desavindos há quarenta anos como o PS e o PCP. Por muitos sinais que houvesse, e nem sequer havia muitos, tal não era previsível que acontecesse. O facto de acontecer teve que ver com a existência de condições para que acontecesse, a perda de maioria absoluta em eleições de uma coligação que governava Portugal, mas tal já se tinha dado no passado sem estas consequências. É a aliança PS-PCP-BE que é nova e o novo ambiente que traz à vida política à esquerda e o efeito de acantonamento que traz à direita. 

 Essa aliança faz-se em volta de um governo de centro-esquerda que permanece no mainstream da vida política nacional e europeia, e que é tudo menos radical. Dizer que é uma “frente popular” só pode ser dito por ignorância, mas, para não variar, a ignorância floresce nestes epítetos. O Governo minoritário do PS assenta numa aceitação, com muita má vontade, diga-se, dos constrangimentos do Tratado Orçamental e num gradualismo que encontrou na voz do PCP, no debate da moção de rejeição, a sua melhor expressão, também ela contra-intuitiva, mas mais razoável inclusive do que no BE — Jerónimo de Sousa a dizer: “O nosso povo sabe que não pode tudo ser feito ao mesmo tempo.” 

Ao mesmo tempo, uma direita cada vez mais à direita, que vinha de um razoável resultado eleitoral, se se tiver em conta as circunstâncias adversas, muito agressiva na comunicação social, detendo cumplicidades extensas com sectores económicos e os novos think tanks de direita nas universidades e fundações, e que governou como quis e lhe apeteceu nos últimos quatro anos, viu-se subitamente colocada em minoria e bloqueada de um acesso ao poder que entendia ter por direito próprio. Essa minoria da direita estava inscrita nos resultados eleitorais, mas a direita nunca pensou que a maioria adversa fosse materializada num entendimento político. 

Depois, um regime centrado no primeiro-ministro, com menorização do Parlamento foi substituído por uma forte parlamentarização do regime, deslocando para a Assembleia a negociação interpartidária e a formulação conjunta dos termos da governação. É uma fragilidade dos acordos e criará dificuldades na sua execução, mas foi o possível numa esquerda que nem sequer no Parlamento se atrevia até há pouco a dar palmas uns aos outros. 

Esta mudança e o seu sentido de surpresa só são mitigados quando temos em conta o contexto internacional. Ela faz parte de uma tendência para os partidos socialistas e outros partidos mais radicais, como o Syriza, começarem a distanciar-se dos anos alemães do “não há alternativa” e de uma insatisfação generalizada com o monopartidarismo real a que tinha dado origem. A experiência falhada do Syriza revelou uma Europa autoritária e vingativa, mas, se para muitos acentuou a impotência, para outros acentuou a incomodidade: alguma coisa estava muito mal na Europa, para se ter passado o que se passou. Depois seguiu-se a vitória de Corbyn no Partido Trabalhista, com os membros do partido a preferirem o retorno a uma identidade partidária forte do velho trabalhismo, em detrimento de considerações eleitoralistas. Como pano de fundo, a crescente crise dos partidos do “arco da governação” em muitos países europeus, capazes ainda de “ganhar” eleições, mas cada vez com menos votos e sitiados por partidos à esquerda e à direita. Para o PPE, o outro lado da tempestade perfeita que foi a conjunção de uma maioria de direita na Europa com a crise financeira de 2008, os sinais são preocupantes, a começar por Espanha, onde o exemplo português vai muito provavelmente ser seguido. Os partidos mais à direita do PPE são capazes ainda de obter maiorias na relação partido a partido com os socialistas, mas estão a tornar-se pestíferos e a concitar todos contra eles. As coisas estão a mudar e é país a país que elas podem vir a mudar na “Europa”. 

É por isso que o Presidente da República, que estudou todos os cenários possíveis, e enfatizou o “todos”, nunca imaginou que este viesse a acontecer. Mas a história é assim, surpresa.'