Já tenho usado algumas vezes a frase da Tempestade de Shakespeare sobre os “estranhos companheiros de cama” gerados pela “miséria” dos dias que atravessamos.
A citação em inglês é "misery acquaints a man with strange bedfellows" e
refere-se a uma altura em que Trinculo, para se proteger da tempestade,
se mete debaixo do manto de Caliban. Trinculo achava que Caliban era
uma espécie de peixe, antes de lhe reconhecer forma humana, e Caliban
olhava com desconfiança Trinculo que lhe parecia um espírito
atormentado. “Estranhos companheiros de cama”.
Existe hoje na vida
política portuguesa uma série de “estranhos companheiros de cama”, cuja
voz pública tem sido muitas vezes, aliás quase sempre, das mais duras
contra a situação, contra o governo da coligação PSD-CDS. Incluo-me
nesse grupo de pessoas e escrevo sobre elas não porque ninguém sinta
qualquer necessidade de o justificar, bem pelo contrário, mas porque
este fenómeno político é uma característica dos nossos dias e merece ser
analisado. Muitas das críticas com mais sucesso ao actual poder, todas
percursoras e algumas que se tornaram virais, vieram desse grupo de
pessoas e não de outras em que, pelo seu posicionamento político, teriam
sido mais previsíveis.
Num comício sobre a Grécia, falei ao lado
de dois membros do Bloco de Esquerda, Louçã e Marisa Matias, de um
economista comunista Eugénio Rosa, de um socialista Manuel Alegre, da
escritora Hélia Correia e do democrata-cristão Freitas do Amaral.
Algumas das palavras mais duras nessa sessão sobre o “estado da Europa”
vieram da mensagem de Freitas do Amaral. Durante a semana, Bagão Félix e
Manuela Ferreira Leite, pronunciaram críticas muito duras ao governo,
como aliás fazem já há alguns anos. Em matérias mais específicas, como
por exemplo, as questões de soberania ou a situação das Forças Armadas,
Adriano Moreira e Loureiro dos Santos, não tem poupado a acção
governativa, com críticas de fundo e de grande gravidade. Podia
continuar com vários exemplos de outros homens e mulheres, que estão
longe de serem revolucionários, radicais, extremistas mas cuja voz se
ergueu com indignação face ao mal que está ser feito ao país, com
intolerância face ao erro e com um espírito analítico certeiro. “Quem
fala assim não é gago”, é uma frase que se lhes pode aplicar.
Também
por isso são alvo de uma enorme raiva, impropérios, insinuações,
acusações que transpiram do lado situacionista, no terreno anónimo dos
comentários não moderados, que não são senão reproduções das conversas
obscenas que certamente se travam nos bares da moda e nas reuniões
partidárias das “jotas”. São os “velhos do restelo”, até porque na
maioria não são novos, que se opõem à gloriosa caminhada governativa
émula das Descobertas, não se percebe bem para quê, nem com que gente
valorosa e destemida. São os “treinadores de bancada”, na linguagem
futebolística que se lhes cola como um fato de treino, os que “só dizem
mal”, “que falam, falam” mas não fazem nada. São os “ressabiados” porque
não lhes foram dadas sinecuras, lugares, posições, quiçá negócios, a
que julgavam ter direito. Esta crítica é muito interessante porque é
espelhar, quem a faz vê-se ao seu próprio espelho
O que
verdadeiramente não suportam é a independência alheia. “Jovens” de
quarenta anos, cuja carreira, se reduz a cargos partidários e as
respectivas nomeações como “boys”, escrevem e vociferam tudo isto. E
afirmam com jactância que ninguém ouve os “velhos do Restelo”. Estão bem
enganados, em termos de audiências, partilhas, e influência, são no
chamado “espaço mediáticos” dos mais ouvidos, vistos e influentes. Falo
dos outros e não de mim, mas também não me queixo.
A tempestade
que criou estes “estranhos companheiros de cama” explica a sua
emergência e o manto que os cobre. Em partidos como o PSD e o CDS, mas
em particular no PSD, houve uma clara deslocação à direita, violando
programas e práticas identitárias, já para não falar do legado genético
do seu fundador Francisco Sá Carneiro. Esta deslocação de um partido que
foi criado pelo desejo fundador de ser o partido da social-democracia
portuguesa, consciente de que num país como Portugal a “justiça social”
era uma obrigação de consciência e de acção, levou à sua
descaracterização. E pior ainda, à mudança do seu papel reformador na
sociedade.
(JOSÉ Pacheco Pereira)
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