08 novembro 2015

nas alturas há mar e gente





 Esta época é estranhamente interessante em termos políticos: não foi 'só' mas foi o que já devia ter sido... Vitorino Nemésio se vivesse hoje em dia reaprenderia a acreditar que a Política não surgiria como Palavrão e seja nova forma de aprender a viver juntos e a criar comunidades.

'Em todo o caso, o pouco que é merece que enchamos as nossas mãos adultas de areia escura da praia e a atiremos ao mar.'

Estamos a mudar e a ter lugar enquanto Povo!

Homens e  Mulheres.


Foi só o ter de ser que já devia ter sido


Vitorino Nemésio nasceu numa casa logo ali atrás, ele ainda não deve saber quem é. Deve andar pelos 8 anos, joga na praia, já fria pelo outono, da cidade que se chama vila. Vila Praia da Vitória. É vila, cidade pequena, sete mil habitantes. É praia, escura porque toda a ilha Terceira é basáltica (mesmo quando vermelha), ondeando o sul da baía protegida por dois molhes que estreitam a entrada. E é vitória, do lado certo em dois fundamentais momentos, ao lado do Prior do Crato na nossa perda da independência e ao lado dos liberais contra os miguelistas. O garoto brinca sozinho na praia também solitária, aborrece-se cedo da bola e põe-se a falar com o mar. Estou longe, não o ouço, vejo-o falar. Virado para o mar já prata do fim da tarde, ergue os braços e baixa-os, exprime-se como nós adultos desaprendemos de falar para não passarmos por malucos. Seria possível prolongar essa espontaneidade sábia pela vida fora? Chegar até ao significado de se ser de Vila Praia da Vitória e continuar a falar aos peixes?

Ser de ilha marca. Aos de fora, pelo menos. Mesmo na Beira Alta, o português que sou, de terras tropicais, sente-se da língua de pedra límpida de Isabel Silvestre nos seus cantares de Manhouce. E até na transmontana Sendim, numa das raras parcelas de território português onde também se fala outra língua nacional, me reconheço. É certo que nesta pequena cidade, Vila Praia da Vitória - tão bonito... - também me reconheço, com as suas janelas debruadas a pedra e apesar de chamarem chicharro ao carapauzinho e "ei, besuga" ser piropo. Mas não me admito retirar-lhes o serem especiais, não outros, mas mais do que eu, por serem ilhéus.

Quando o garoto, na praia, falava para o mar, telefonaram-me de Lisboa a dizer que havia acordo. Não exageremos, não é caso disso, apesar dos besugos (no significado de parolo que lhes dão os continentais), apesar de esses besugos, pois, levarem as mãos à cabeça, a já se verem perseguidos e no gulag. Não será esse mal que vai acontecer. Nem também é o bem com que outros se empolgam. Nem uma nem outra coisa. Afinal, foi só a chegada à vida adulta de dois partidos, BE e PCP, que andavam a brincar aos revolucionários que já não eram. Da política-ficção em que eles andavam, chegámos à política-fricção em que nos metemos todos, por termos de contar com eles, agora inteiros. Não que seja muito o que ganhámos - só a normalidade. De muito, foi só termos acabado com a anormalidade. Aleluia!

Eu gostaria de saber ensinar ao garoto que ainda ali está - agora atira ao mar areia às mãos-cheias - que devia, pela vida fora, detestar o desperdício. Podia contar-lhe que um dos homens mais inteligentes e devotados que conheci, Francisco Louçã, passou décadas a desperdiçar-se (e a desperdiçar--nos) numa empresa tola. Apesar de ele há muito admitir - pela ação que não por palavras - que esta democracia é a pior forma de governo, com exceção das outras, ele fez de conta que ainda defendia outra alternativa. Outra que, por exemplo, o impedia de apoiar um governo do PS.

Gostaria de dizer ao garoto: sabes, esse homem honrado julgava-se convicto, mas era só teimoso. Tão teimoso que o concurso de circunstâncias que levou ao telefonema que recebi ("há acordo"), felizmente o apanhou, a Francisco Louçã, já não líder daquilo de que ele era o inquestionável líder. Felizmente. Porque fosse ele ainda o líder, não teríamos chegado a esta óbvia normalidade de hoje. Estaríamos agarrados à teimosia a que Louçã se agarrava, leal ao que sempre dissera. Felizmente, não sendo ele o líder, ele pôde emprestar (e tem emprestado) a sua inteligência à única solução inteligente. E já houve acordo, com participação, conselho, inteligência e dedicação de Francisco Louçã.

E porque as coisas são assim, trago para aqui o garoto que ontem à tarde brincava na praia da Vila Praia da Vitória, Açores. É tão extraordinário podermos governar um garoto no meio do oceano e no fim duma história tão antiga, que me espanta termos ficado agarrados a tolices. Pronto, já não estamos. Não dá para deitar foguetes, não dá, já o disse. É muito pouco, foi só o ter de ser que já devia ter sido. Em todo o caso, o pouco que é merece que enchamos as nossas mãos adultas de areia escura da praia e a atiremos ao mar.