Esta época é estranhamente interessante em termos políticos: não foi 'só' mas foi o que já devia ter sido... Vitorino Nemésio se vivesse hoje em dia reaprenderia a acreditar que a Política não surgiria como Palavrão e seja nova forma de aprender a viver juntos e a criar comunidades.
'Em todo o caso, o pouco que é merece que enchamos as nossas mãos adultas de areia escura da praia e a atiremos ao mar.'
Estamos a mudar e a ter lugar enquanto Povo!
Homens e Mulheres.
Foi só o ter de ser que já devia ter sido
Vitorino Nemésio
nasceu numa casa logo ali atrás, ele ainda não deve saber quem é. Deve
andar pelos 8 anos, joga na praia, já fria pelo outono, da cidade que se
chama vila. Vila Praia da Vitória. É vila, cidade pequena, sete mil
habitantes. É praia, escura porque toda a ilha Terceira é basáltica
(mesmo quando vermelha), ondeando o sul da baía protegida por dois
molhes que estreitam a entrada. E é vitória, do lado certo em dois
fundamentais momentos, ao lado do Prior do Crato na nossa perda da
independência e ao lado dos liberais contra os miguelistas. O garoto
brinca sozinho na praia também solitária, aborrece-se cedo da bola e
põe-se a falar com o mar. Estou longe, não o ouço, vejo-o falar. Virado
para o mar já prata do fim da tarde, ergue os braços e baixa-os,
exprime-se como nós adultos desaprendemos de falar para não passarmos
por malucos. Seria possível prolongar essa espontaneidade sábia pela
vida fora? Chegar até ao significado de se ser de Vila Praia da Vitória e
continuar a falar aos peixes?
Ser de
ilha marca. Aos de fora, pelo menos. Mesmo na Beira Alta, o português
que sou, de terras tropicais, sente-se da língua de pedra límpida de
Isabel Silvestre nos seus cantares de Manhouce. E até na transmontana
Sendim, numa das raras parcelas de território português onde também se
fala outra língua nacional, me reconheço. É certo que nesta pequena
cidade, Vila Praia da Vitória - tão bonito... - também me reconheço, com
as suas janelas debruadas a pedra e apesar de chamarem chicharro ao
carapauzinho e "ei, besuga" ser piropo. Mas não me admito retirar-lhes o
serem especiais, não outros, mas mais do que eu, por serem ilhéus.
Quando
o garoto, na praia, falava para o mar, telefonaram-me de Lisboa a dizer
que havia acordo. Não exageremos, não é caso disso, apesar dos besugos
(no significado de parolo que lhes dão os continentais), apesar de esses
besugos, pois, levarem as mãos à cabeça, a já se verem perseguidos e no
gulag. Não será esse mal que vai acontecer. Nem também é o bem com que
outros se empolgam. Nem uma nem outra coisa. Afinal, foi só a chegada à
vida adulta de dois partidos, BE e PCP, que andavam a brincar aos
revolucionários que já não eram. Da política-ficção em que eles andavam,
chegámos à política-fricção em que nos metemos todos, por termos de
contar com eles, agora inteiros. Não que seja muito o que ganhámos - só a
normalidade. De muito, foi só termos acabado com a anormalidade.
Aleluia!
Eu gostaria de saber ensinar
ao garoto que ainda ali está - agora atira ao mar areia às mãos-cheias -
que devia, pela vida fora, detestar o desperdício. Podia contar-lhe que
um dos homens mais inteligentes e devotados que conheci, Francisco
Louçã, passou décadas a desperdiçar-se (e a desperdiçar--nos) numa
empresa tola. Apesar de ele há muito admitir - pela ação que não por
palavras - que esta democracia é a pior forma de governo, com exceção
das outras, ele fez de conta que ainda defendia outra alternativa. Outra
que, por exemplo, o impedia de apoiar um governo do PS.
Gostaria
de dizer ao garoto: sabes, esse homem honrado julgava-se convicto, mas
era só teimoso. Tão teimoso que o concurso de circunstâncias que levou
ao telefonema que recebi ("há acordo"), felizmente o apanhou, a
Francisco Louçã, já não líder daquilo de que ele era o inquestionável
líder. Felizmente. Porque fosse ele ainda o líder, não teríamos chegado a
esta óbvia normalidade de hoje. Estaríamos agarrados à teimosia a que
Louçã se agarrava, leal ao que sempre dissera. Felizmente, não sendo ele
o líder, ele pôde emprestar (e tem emprestado) a sua inteligência à
única solução inteligente. E já houve acordo, com participação,
conselho, inteligência e dedicação de Francisco Louçã.
E
porque as coisas são assim, trago para aqui o garoto que ontem à tarde
brincava na praia da Vila Praia da Vitória, Açores. É tão extraordinário
podermos governar um garoto no meio do oceano e no fim duma história
tão antiga, que me espanta termos ficado agarrados a tolices. Pronto, já
não estamos. Não dá para deitar foguetes, não dá, já o disse. É muito
pouco, foi só o ter de ser que já devia ter sido. Em todo o caso, o
pouco que é merece que enchamos as nossas mãos adultas de areia escura
da praia e a atiremos ao mar.
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