Claro
que falar do viver como sendo uma profissão tem o seu quê de
insólito. A vida não é um ofício, é uma condição. Mas
referir-se a ela desse modo talvez nos ajude na compreensão de
quanto a vida nos pede de aprendizagem, iniciação e sucessivos
recomeços. Era Erich Fromm quem dizia que as pessoas felizes são
aquelas que encaram todo o curso da sua vida como um processo de
nascimento, rompendo com a gramática mais comum que considera que
cada um de nós só nasce uma vez, só tem uma grande oportunidade,
só percorre um caminho antes de se precipitar no fim.
Erich Fromm
defendia que tal modo de pensar gera este efeito devastador: vermos
tanta gente morrer sem sequer ter chegado a nascer. De facto, o
verdadeiro e exigentíssimo desafio que se coloca ao ser humano é
levar a cumprimento o seu nascimento. Nisto, nós humanos
diferenciamos-nos das outras criaturas, que em pouco tempo já são
completamente aquilo que são. Nós, ao contrário, somos inacabados;
recebemos a vida como dom, mas também como tarefa; vivemos no
decurso do tempo o processo do nosso próprio parto; precisamos de
muitos anos (e de muito trabalho interno) para chegar a exprimir o
que há em nós de original. Os mestres estóicos, na Antiguidade,
motivavam os discípulos a construir a sua própria estátua. Quer
dizer, exortavam-nos ao labor de si para edificar a sua própria
humanidade, esse labor face ao qual todos os outros que desenvolvemos
são simplesmente preparatórios.
As
nossas sociedades concentraram demasiado a sua aposta de formação
em saberes técnicos e científicos, ou então assumidamente
parcelares e especializados, apontando como horizonte o resultado
sobretudo económico e, como consequência, damos por nós
analfabetos, vulneráveis e desprovidos nas dimensões fundamentais
do viver. Uma das patologias contemporâneas é este défice de
sabedoria, esta falta de uma arte da existência. Por isso, não só
um a um e em doloroso contra-ciclo, como na melhor das hipóteses
acontece, mas como comunidades no seu conjunto teremos de
confrontar-nos com aquelas perguntas que T. S. Eliot coloca num dos
seus poemas: “Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a
sabedoria que perdemos com o conhecimento? Onde está o conhecimento
que perdemos com a informação?”. Eliot tem razão: a vida não só
se ganha, também se perde quando nos tornamos prisioneiros do
imediato, do desagregado e do fragmentário, sem espaço para
reelaborar o vivido a partir de razões mais profundas.
Por
sua vocação, o ser humano não se realiza apenas na luta pela
sobrevivência. A par dessa, ele precisa de conhecer-se a si mesmo,
viver na exterioridade e na interioridade, precisa de avizinhar-se
com vagar da “espantosa realidade das coisas”, escutar o visível
até ao fim e para lá do visível, porque a vida é surpresa e
mistério. Precisa de acreditar e duvidar, recolher e lançar o mesmo
propósito muitas vezes, precisa de dizer e calar, abraçando assim
esse movimento que é afinal imobilidade e essa imobilidade que é
afinal movimento. Atirámos as experiências de vida contemplativa
para uma periferia e olhámos para essas expressões (religiosas,
culturais, humanas) com indiferença, como se não tivessem nada a
ensinar-nos. Dispersámos assim um património espiritual de que as
nossas sociedades carecem absolutamente. Friedrich Nietzsche
escreveu: “Por ausência de quietude a nossa civilização está a
desaguar numa nova barbárie. Nunca como hoje o activismo dos
irrequietos gozou de tamanha consideração. Por isso, uma das correcções a introduzir no modo de vivermos a nossa humanidade seria
reforçar largamente o elemento contemplativo”.
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