CRÓNICA
Bruno Vieira Amaral escreve, na tribuna Expresso, sobre Benfica e das boas ilações a retirar do jogo menos conseguido de David Neres, porque certos artistas, depois de terem sido carregados em liteiras, nunca mais querem andar a pé. E pede que se festeje o regresso ao rebanho de Florentino e que se desfrute do seu pulmão de sherpa e inteligência de cefalópode
“O menino é ouro!” deve ser a segunda frase de Béla Guttmann mais conhecida dos benfiquistas que ainda hoje suspiram pela repetição desse momento de Arquimedes aplicado ao futebol. O instante alquímico que não oferece dúvidas, a descoberta do génio que dá sentido a tudo. Embora saiba reconhecer e adotar os que demonstram virtudes guerreiras ou laborais, o que o benfiquista mais deseja é ver aquele jogador que não engana, o génio nato, o artista.
E David Neres é artista, não haja a mínima dúvida. O problema é que a rendição instantânea e a adulação automática, por muito boas intenções que tenham na sua origem, induzem uma complacência nefasta. Certos artistas, depois de terem sido carregados em liteiras, nunca mais querem andar a pé. Percebem a multidão que os venera. Percebem que é um público desejoso de amar os seus génios, disposto a largar tudo para seguir os profetas, até mesmo os falsos, do seu culto volúvel. E às vezes o jogador contenta-se em jogar para a bancada, faz um truque, dois, e volta para casa a pairar sobre um tapete de pétalas e aplausos.
É dos pés de Neres que os benfiquistas esperam improviso, magia, arte. E como não querem que aconteça nada ao seu pequeno feiticeiro, criam uma atmosfera artificial, um saco amniótico de louvores, uma redoma protetora de carinho. E se não for o próprio jogador a ter dentro de si o fogo do antagonismo, as primeiras agruras e as primeiras “marcações impiedosas” hão de parecer-lhe uma afronta ao estatuto semidivino que os adeptos lhe atribuíram. Por isso é bom que David Neres tenha estado apagado, que ele e os benfiquistas se habituem às oscilações do seu brilhantismo, que nem sempre entre em campo para do nada inventar rosas.
Mas o meu assunto hoje é ovino. Queria falar de ovelhas tresmalhadas e, quase sem querer, comecei por falar de um cordeiro de Deus (noutra ocasião falarei dos bodes expiatórios). Se leram a vossa bíblia, se estiveram atentos à vossa catequese, conhecem a parábola da ovelha tresmalhada. Está em Mateus 18:10-14. É uma história breve. Jesus pergunta aos que o seguem: se um homem tiver cem ovelhas e uma se tresmalhar, não deixará as outras e irá à procura da que se perdeu? E se a encontrar não ficará mais alegre por a ter encontrado do que pelas restantes noventa e nove que nunca se perderam?
A resposta já se sabe. Em verdade vos digo, há mais alegria no coração benfiquista pelo regresso de Florentino do que pelos outros que nunca se tresmalharam ou por aqueles que só agora se juntaram ao rebanho, por muito especiais que sejam. De quem é a culpa que um jogador da casa com tanta qualidade, qualidade que já tinha sido demonstrada, tivesse andado por outras pastagens sem proveito para ninguém? Desconfio que seja dos pastores do rebanho, mas esta não é a hora de acertos de contas.
É hora de festejar o regresso da ovelha tresmalhada, desfrutar do pulmão de sherpa e da inteligência de cefalópode de um jogador que comanda o meio-campo sem dar um berro e assombra (mais do que pressiona) os adversários sem alarido, sorrateiro como um índio de western, eficaz e silencioso como uma zarabatana.