A chuva de Jasmim
Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi inspira-se nas publicações do povo palestiniano livre para falar sobre a chuva de jasmim.
O meu texto é um povo.
Não vou dizer.
Só o nunca irá tirar a minha raiva após raiva do seu escavado oco extremamente vazio.
Não pronunciarei quantos são. Não declararei um número que, entretanto, mudou, que, entretanto, mudou, que, entretanto, mudou de pessoas que eternamente ficaram. Por serem palestinianas, para sempre desapareceram do lugar para onde fugiram. Morreram sem jantar. Na sua garganta, nem sequer um cuspo de água. Não irei torná-las, mais uma vez, num número exilado, agora para uma notícia de rodapé.
Qual poema, pá! Não irei partilhar histórias de amor, de coragem e de resiliência. Que se foda a resiliência. O meu ser já fui interrompido perante um termo, mas até as minhas palavras já foram exterminadas.
O meu texto já foi eliminado.
O nó na minha garganta é agora uma vala comum: “De tanto carregar caixões dos meus amigos, meu ombro tornou-se cemitério.” Que verso aguentaria ao lado da pergunta: “pai, os mortos vão para o céu, o mesmo lugar de onde nos caem as bombas?”.
A cantiga já não é uma arma.
Nada irá desentupir a minha tanta fala que em se mim cala. Nunca conseguirei clamar de volta, aos ouvidos deliberadamente surdos, os gritos que ecoam no meu corpo estupidamente distante: “Esta cinza era uma vez o meu filho.”
Pausa. O meu texto é silêncio.
Até onde pode ir o fundo deste abismo? Não me vou pronunciar sobre os estilhaços das notícias que furam apenas alguns olhos. Não vou empurrar os cadáveres da minha gente colher a colher nas bocas imundas, tentando comprovar que nós não nos sufocámos a nós.
Ó mundo, estás aí?
O jornalista está a anunciar finalmente a chegada da única sobrevivente: “ninguém sabe quem é, nem ela própria.”
O meu texto é uma incógnita.
Não vou chamar mais ninguém para mostrar as tantas, tantas, tantas vidas que caíram nos meus dedos atados a um telemóvel. Não vou comprovar que realmente eram vidas, nem sequer humanas.
Jamais serei filha de um refugiado palestiniano, apenas filha da puta.
Não vou descrever a foto da Eline, com um nome em si loiro, morta com o seu pequeno chapeau, nem sequer permitir de só pelos seus olhos azuis a verem: era mesmo uma menina. Não vou traduzir o testamento de Haya, a distribuição justa dos seus brinquedos e da poupança do seu mealheiro que desobedece a qualquer interpretação. O meu texto é um mealheiro. Zein encontrou o seu nos destroços da sua casa, mas agora nada serve comprar a cama para a qual poupava. Estará o menino sem nome ainda a escavando os escombros para encontrar a sua família?
O meu texto são escombros sem nome.
Não vou. Não vou nem sequer esvaziar aqui os sacos literalmente cheios de restos de filhos, são apenas sacos e de plástico, cheios de lixo humano: nós.
O meu texto somos nós em sacos de plástico.
A minha voz ficou rouca de utilizar as maiúsculas nos termos ditos certos: Direito Internacional, Resoluções das Nações Unidas, Autodeterminação, mas a mim quem me determina?
O amigo de Nour perdeu todos os seus amigos, “um bairro partiu-se.” O meu texto é um bairro.
Encosto o meu ecrã ao ombro da Mariam enquanto chora “nem sequer pelo horror que se abateu sobre nós, mas pela negação de que nos esteja a acontecer.” Samaher não chorou como prometeu, “deixando escapar apenas duas pequenas lágrimas insistentes, para que a barragem não se rompa com os seus gemidos.” Sem chorar preveniu-se da morte, abdicando do direito de autora, colocando o seu romance para descarregar, que chega ao meu ecrã diretamente de Gaza.
O meu texto é carregado e descarregado de Gaza.
Dois lados? Não, o coro da minha alma jamais vai repetir: prisão a céu aberto, apartheid, ocupado – ocupante, oprimido – opressor, Nakba, Naksa, 1948, 1967, 2023, mas porque raio este terramoto não abana ninguém?
Meu texto é um terramoto.
Porque falar dos sonhos de Farah se agora se resumem a um momento diário em que recebe a mensagem: “Estou ainda viva”. Qualquer chamada é uma potencial despedida, qualquer momento é um potencial momento, mesmo assim, num telefonema milagrosamente possível, entre um bombardeamento e outro, a mãe de Kawther não se esquece de ser mãe: “que é feito da tua menta, filha?”.
“Fida Falaestin. Para ti Palestina,” disse o homem que poupou 40 anos para construir a casa que se tornou pó. Luz.
A minha língua já ficou paralisada, imaginando o estendal de Hiba. Um bairro inteiro exilou-se deixando a solidão num estendal longínquo na janela de uma vizinha. Hiba responde, estendendo toalhas, que muda de cor e posição todos os dias. A mulher da janela distante, faz o mesmo. Uma toalha, estou viva. Outra, estou de verde. Estou contigo. Estamos juntas. Resistirmos.
Prosa, o caraças!
Sim, eu ouvi bem, ele disse: “Por cima dos escombros da minha casa, dormirei. Aqui permanecerei”. Mas aquele meu povo palestiniano não largou ainda a tal doença incurável chamada esperança?
O meu texto é incurável.
Enquanto lhe choviam rockets na cabeça, Eman dizia: “rezo para que chova jasmim”.
Com ela, irei sacudir os meus corpos mortos, levantar a minha bandeira e a minha dança. Um dia haverá chuva de jasmim.
O meu texto é chuva de jasmim.
Esta crónica foi inspirada pelas publicações do povo palestiniano livre.
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