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“No meu trabalho é constante o chegar e o partir de pessoas. Os doentes claro, a quem a hospitalidade é necessária, mas ao mesmo tempo estranha.” Foto © Inês Patrício. |
Numa entrevista a Tolentino Mendonça ouvi uma palavra que, não sei bem porquê, não ouvia, ou não pensava, há muito tempo. Hospitalidade. “Modo generoso e afável de receber ou tratar alguém.” Assim diz o dicionário Priberam. A palavra ficou. Anda aqui por dentro, “da cabeça para o coração e do coração para a cabeça”, como escreveu Almada Negreiros.
No meu trabalho é constante o chegar e o partir de pessoas. Os doentes claro, a quem a hospitalidade é necessária, mas ao mesmo tempo estranha. Porque no hospital, nem os doentes, nem os médicos, querem que ali se fique. Quer-se que aquele tempo não seja nem muito difícil, nem muito longo.
Os colegas, num ritmo mais ou menos rápido, chegam e vão. Sobretudo os internos, vêm e ficam uns meses, uns anos, depois vão embora. Chegam e vão colegas de outras especialidades que pelas nossas enfermarias, frequentemente, têm o que fazer.
A palavra ficou. Mesmo com este treino diário, há anos, terei essa qualidade: Hospitalidade? Generosa e afável a receber? Simpatia é outra coisa. Hospitalidade, pergunto.
Numa outra conversa ouvida, com a realizadora Cláudia Varejo, cineasta, juntaram-se outras ideias. Ela, muito antes de começar a filmar, sobretudo se não se trata de actores, leva um demorado tempo a conhecer as pessoas. “O Foco são as pessoas”. E aí fiquei também presa. O foco são as pessoas. Quando tudo parece muito difícil é, muitas vezes, um momento absolutamente concreto de contacto com alguém que me salva o dia. Não são as coisas, os procedimentos ou os orgulhos. Mesmo estando num momento da profissão, especialmente na Alemanha, onde não se espera que eu demonstre inseguranças ou dúvidas, eu decidi, desde o início, ainda em Portugal, que nenhuma pessoa receberia um tratamento menos adequado por causa do meu orgulho ou da minha vergonha. Não é difícil, porque penso sempre que a pessoa é que é importante. Sigo a perguntar.
Dessa conversa surgiu também a “Atenção à variedade.” A história que cada um transporta. Na linha de Chimamanda Adichie e a recusa da “história única”. Nisso Berlim é muito rica porque é muito livre (acredito que já tenha sido mais). Cidade de muita gente diferente, que a procura, porque aqui tem o seu lugar. Não é maravilhoso que as pessoas sejam isso mesmo, apenas pessoas? Cada um veste, come, reza, adora, namora, vive o que quiser, sem que haja um controlo social sufocante. Se se quiser estar atento, essa variedade faz acontecer mudanças cá dentro. Compreende-se, claramente, que é num monte de ideias feitas que crescem incompreensões, preconceitos e medos. Durante muito tempo ficava desalentada por não encontrar pessoas com que me identificasse, profundamente (de preferência). Agora usufruo a diferença. Penso muitas vezes numa frase, que ouvi tantas vezes em criança… Ainda bem que as pessoas são diferentes, “por isso é que o mundo não se vira”. E tem graça que, com quem menos se espera, se vivem momentos de pura identificação.
Sou uma grande adepta de viver outras vidas através da cultura, em especial no teatro, no cinema e na literatura. Uma só vida não chega para se viver tudo. É como se a ficção nos preparasse melhor para a realidade. No entanto nada disso substitui o foco nas pessoas e a atenção à variedade. É preciso, parece-me, mais que perguntar, ouvir. Acontece-me, constantemente, alegrar-me por ter ficado calada a esperar, a observar, como os outros se movem, como se referem ao que acontece ou ao que desejam. É tão fácil dizer a coisa errada! Posso ter curiosidade em perguntar muitas coisas, mas as minhas perguntas estão cheias de ideias feitas: do que é uma pessoa oriunda daquele país, do que é uma mulher que fez um aborto voluntário, de uma mulher Trans, de um homem homossexual, de uma colega sempre com ar frágil e inexpressivo. As ideias que eu tenho não são más ou acusatórias, nada disso! Mas claro que imagino histórias (e mesmo sofrimentos) que nada têm a ver com a pessoa à minha frente.
Prefiro então receber as pessoas com simpatia, sem ansiedade. Dar tempo ao tempo. Prefiro que as conversas surjam, se surgirem. Aprendo a aceitar que muitas histórias nunca saberei e que isso também está bem. Talvez seja essa a minha forma de hospitalidade. Incompleta, mas honesta.
Inês Patrício é médica, vive em Berlim com o marido de olhos de mar e uma filha solar.
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