Carta aberta ao presidente da JSD e seus compagnons de route
Hesitei em decidir a quem me dirigir: não sei quem hoje é o mandante da JSD, nem a quem prestam vassalagem. Assim, terei de me dirigir ao presidente formal da JSD – e a quem deu publicamente a cara por uma das maiores indignidades que se registaram na história parlamentar da República.
Para vocês, que certamente
não me conhecem, permitam-me que me apresente: sou militante do PSD, com
o n.º 10757. Na JSD onde me filiei aos 16 anos, fui quase tudo:
vice-presidente, director do gabinete de estudos, encabecei o conselho
nacional, fui quem exerceu funções por mais tempo como presidente da
distrital de Lisboa, fui dirigente académico na Faculdade de Direito de
Lisboa, eleito com a bandeira da JSD, fui membro da comissão política
nacional presidida por Pedro Passos Coelho, de quem, de resto, fui um
leal colaborador. Quando saí da JSD, elegeram-me em congresso como vosso
militante honorário.
Por isso julgo dever dirigir-me a vocês, para vos dizer que a vossa actuação me cobre de vergonha. E que deslustra tudo o que eu, e tantos outros, fizemos no passado, para a emancipação cívica, económica, cultural e política, da juventude e da sociedade.
Com a vossa proposta de um referendo sobre a co-adopção e a adopção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo, vocês desceram a um nível inimaginável, ao sujeitarem a plebiscito o exercício de direitos humanos. A democracia não deve referendar direitos humanos de minorias, porque esta não se pode confundir com o absolutismo das maiorias. Porque a linha que separa a democracia do totalitarismo é ténue – é por isso que a democracia não dispensa a mediação dos seus representantes – e é por isso que historicamente as leis que garantem direitos, liberdade e garantias andam à frente da sociedade. Foi assim com a abolição da escravatura, com o direito de voto das mulheres, com a instituição do casamento civil, com a autorização dos casamentos inter-raciais, com o instituto jurídico do divórcio, com o alargamento de celebração de contratos de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Estes direitos talvez ainda hoje não existissem se sobre eles tivessem sido feitos plebiscitos.
Abstenho-me de fundamentar aqui a ilegalidade do procedimento que se propõem levar avante: a violação da lei orgânica do referendo é grosseira e evidente – misturaram numa mesma proposta de referendo duas matérias diferentes e nem sequer conexas. Porque adopção e co-adopção são matérias que vocês pretendem imoralmente enfiar no mesmo saco.
Em matéria de co-adopção vocês ignoram ostensivamente o superior interesse das crianças já criadas em famílias já existentes e a quem hoje falta a devida segurança jurídica e protecção legal. Ao invés, vocês querem que os seus direitos sejam referendáveis. Confesso que me sinto embaraçado e transido de vergonha pela vossa atitude: dispostos a atropelarem o direito de umas poucas crianças e dos seus pais e mães, desprotegidos, e em minoria, em nome de uma manobra política. E isto é uma vergonha.
Mas é também com estupefacção que vejo a actual JSD tornar-se numa coisa que nunca foi – uma organização conservadora, reaccionária e atávica. Vocês empurram, com enorme desgosto meu, a JSD para uma fronteira ideológica em contradição com a nossa História e ao arrepio do nosso património de ideias e valores: o humanismo em matéria de liberdades individuais sempre foi nossa trave mestra. O que vocês propõem é uma inversão de rumo: conservadores na vida familiar mas liberais na economia. Eu e alguns preferimos o contrário. Porque o PSD, em que nos revimos, sempre foi o partido mais liberal em matéria de costumes e em matérias de consciência.
Registo, indignado, o vosso silêncio cúmplice perante questões sacrificiais para a juventude portuguesa. Não vos vejo lutar contra o corporativismo crescente das ordens profissionais e a sua denegação do direito dos jovens a aceder às profissões que escolheram. Não vos vejo falar sobre a emigração maciça que nos assola. Não vos vejo preocupados com muitas outras questões.
Mas vejo-vos a querer que eu decida o destino dos filhos dos outros.
Na JSD em que eu militei sempre fomos generosos: queríamos mais direitos para todos. Propusemos, entre tantas coisas, a legalização do nudismo em Portugal, o fim do SMO, a despenalização do consumo das drogas leves, a emancipação dos jovens menores e o seu direito ao associativismo.
Nunca nos passaria pela cabeça querer limitar direitos.
Hoje vocês não se distinguem do CDS e alguns de vocês nem sequer se distinguem da Mocidade Portuguesa, ou melhor, distinguem-se, mas para pior.
A juventude já vos não liga nenhuma. E eu também deixei de vos ligar.
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