1. Há um ruído extremo a que só responde a mudez. Seria como
falar num funeral onde gente que nunca conviveu com o morto disputa o luto com
gente que atira mortos para debaixo do tapete. O horror do que acaba de
acontecer, do que acontece em contínuo e do que se anuncia confluem num
silêncio. Foi o que se passou comigo depois do ataque ao Charlie Hebdo.
2. Quando o ataque aconteceu, eu estava fechada em Belgrado a
escrever. Tinha vindo de Sarajevo há dias e ia para Srebrenica dentro de dias,
dois símbolos da guerra na Bósnia. Passavam vinte e oito anos desde que a minha
carteira de jornalista fora emitida. O último livro que publiquei não teria
saído na ditadura. Liberdade de expressão não é este mês de Janeiro, nem um
emprego, é a vida.
3. As capas do Charlie Hebdo nunca me fizeram rir, nada
daquilo me interessa e há tanta coisa interessante para ler, como haverá gente
que gosta de ler o Charlie: tudo isso é irrelevante para o horror de 12 pessoas
executadas numa redacção porque fazem um jornal satírico. Então, curvo a cabeça
perante a sepultura de cada uma, minha camarada de vida. O horror destas mortes
existe autónomo, estanque. Não é atenuado por nada e não exclui nada. Horror
puro.
4. Os assassinos da equipa do CH (e depois do ataque à
mercearia kosher), sim, têm passado, contexto, tal como a França, a Europa ou
aqueles chefes de Estado unidos na compaixão global, uma frente tão inclusiva
que não excluiu assassinos de Estado. Charlie realmente não merecia que
Netanyahu fosse Charlie. Fora essa frente, e mercenários em geral, bom ver
tanta gente junta pela liberdade. A liberdade de expressão sai mais forte de
tudo isto, quero crer, a começar pelo CH pós-matança ter saído com um Maomé a
dizer “Je suis Charlie”.
5. Escrevo esta crónica de Srebrenica onde em Julho de 1995 a
Europa deixou que 8372 homens fossem separados das mulheres e crianças e
sistematicamente mortos apenas por serem muçulmanos. Aliás, “8372...” diz a
pedra do memorial, porque 8372 era o número de corpos identificados no momento
em que a pedra foi lá posta. Entretanto, dezenas de outros corpos continuam a
sair do puzzle da antropologia forense. Em Janeiro de 2015, em Srebrenica, vejo
muitas sepulturas provisórias posteriormente acrescentadas, placas de plástico
verde à espera dos marcos em mármore que compõem esta floresta única. Foi o
maior massacre europeu desde o Holocausto, genocídio, decidiu finalmente o
Tribunal de Haia. Aconteceu há 19 anos e meio, no Sudeste da Europa, perante
europeus: os holandeses “capacetes azuis” da ONU, que a ONU entendeu não
reforçar, quando era evidente que não seriam capazes de conter as tropas
sérvias de Ratko Mladic, neste momento ainda réu em Haia por crimes contra a
humanidade e genocídio.
6. Perante europeus e entre europeus, porque “o mundo
muçulmano” não é um lugar fora da Europa. Se mundo muçulmano é onde houver um
muçulmano, a Bósnia tem uma maioria muçulmana há séculos. A Europa integra o
mundo muçulmano, o mundo muçulmano integra a Europa. Os políticos podiam
começar por aí, quando falam de “integração” nos “valores europeus”. É que,
segundo esses tais valores, um muçulmano da Bósnia não é menos europeu do que a
senhora Merkel.
7. Não fui eu que falei da matança de Paris, foi ele, o jovem
imã da mesquita central de Srebrenica. Também não tínhamos combinado nada. Eu
descera a colina com um amigo, entre todas aquelas casas de tijolo em bruto que
são a paisagem semi-reconstruída da cidade, uma beleza de encostas alpinas
habitada por quem não tem dinheiro para acabamentos. Chegámos à mesquita, mesmo
ao lado da igreja ortodoxa, num largo coberto de neve, pouco antes do pôr do
Sol. Mas, quando pressionei a maçaneta, o portão abriu. E daí a nada apareceu
um rapaz muito alto de gorro, como todos aqui no Inverno. Era o imã, vinha para
a oração, convidou-nos a tirar as botas, entrar. Depois chegou um pequeno
ancião, fisicamente o oposto do imã. Ali ficámos sentados, a assistir à oração na
mesquita principal de Srebrenica: o jovem imã e o velho fiel, voltados para
Meca, cercados pelo vazio.
8. Mas à sexta-feira a mesquita enche, ressalva o imã, que se
chama Ahmed Hrustanovic e tem 28 anos. Em 1995, estava a salvo com a mãe a
dezenas de quilómetros daqui, era criança. Já os homens da família foram todos
executados pelas tropas de Ratko Mladic: pai, quatro tios, dois avós. Perfaz
sete parentes Hrustanovic gravados na grande floresta funerária de Srebrenica.
Não é um apelido raro.
9. Entre os que fugiram, os que foram deportados e os que
morreram, não sobraram muitos muçulmanos em Srebrenica, em 1995. Depois dos
acordos de paz, a Bósnia foi dividida em duas entidades, Federação da Bósnia e
Herzegovina e República Srpska, onde existe uma maioria sérvia. É nessa metade
que está Srebrenica, muito perto da fronteira com a Sérvia. Ainda assim, apesar
do massacre, e da firme presença sérvia, muitos muçulmanos foram regressando ao
seu pedaço de terra, e hoje Srebrenica tem uns 3500 muçulmanos e uns 3500
sérvios.
A relação é cordial, diz o jovem imã, ele faz compras em
lojas sérvias, só não consegue esquecer que são sérvios. Mas há um mês um amigo
casou, ele muçulmano, ela sérvia, como acontecia tanto antes da guerra, e hoje
acontece tão menos. Hoje é pior, claro, e depois de Paris talvez pior. É o
jovem imã quem fala de Paris, quem chama loucos aos assassinos, quem teme o
efeito disto na vida dos muçulmanos.
10. Depois de quem perdeu a vida, ninguém perdeu tanto com
Paris como os muçulmanos. A vida de cada um vai ficar um pouco mais difícil. Em
compensação, a vida da família Le Pen ficará melhor, e com ela a dos xenófobos
em geral. Sobretudo a vida das milícias recrutadoras estilo Boko
Haram-ISIS-Al-Qaeda, a quem só interessa que a vida dos muçulmanos na Europa se
torne cada vez mais difícil. Carne para canhão. Este é o horror que se anuncia,
acrescentado ao horror contínuo.
11. Antes do genocídio, a ONU garantira aos muçulmanos que
nada lhes aconteceria, aprovara até uma resolução declarando Srebrenica Zona
Segura. Foi fazer companhia na gaveta a todas aquelas resoluções que o governo
de Israel ignora, e o que é que a Europa, por acaso ex-colonizadora (França,
Inglaterra) de todo aquele território israelo-palestiniano &
vizinhanças tem feito por isso nas últimas décadas? Enquanto a liberdade de
expressão é um bem oficial em Israel (não contando com os obstáculos à
liberdade de movimento e circulação de jornalistas), uns milhões de
palestinianos nunca tiveram liberdade de circulação e movimento no seu tempo de
vida, dos pais ou dos avós. Este é o horror antes e além da compaixão global,
até porque ninguém aguenta emocionar-se durante tanto tempo.
12. Apesar de tudo, o jovem imã de Srebrenica continua a
deixar a porta aberta. No fim da conversa, já bem caíra a noite, aliás, voltou
à roupa de Inverno, ao gorro de lã, e despediu-se, deixando-nos ainda
descalços, com a mesquita toda por nossa conta.