Já foi notado que alguns apoiantes das convergências à
esquerda começaram a usar "geringonça" como um termo de simpática
auto-identificação. Fazê-lo ajuda a esvaziar com humor o sentido da palavra, quando
usada original e pejorativamente pela direita. E nestas coisas, não interessa
quem gerou a palavra; interessa quem lhe tem carinho.
Eu confesso o meu afeto pela geringonça. Desde logo, é mais
apelativo do que a expressão consagrada por anos de uso, desuso e abuso à
esquerda, a "convergência". Da próxima vez que participar numa
convergência à esquerda sou até capaz de dizer: "olha, vamos fazer uma
geringonça?".
Acima de tudo, esta geringonça demorou para chegar. Mais de
quarenta anos de espera, e os últimos quatro de desespero. Para quem esperou e
desesperou (e se mexeu para ver acontecer) é impossível não sentir alguma
comoção quando os deputados e deputadas de esquerda se levantam ao mesmo tempo
para aprovar um orçamento de estado.
Sim, é um exercício difícil. Mas ninguém disse que ser de
esquerda é governar apenas quando for fácil. Sim, ainda há muito para discutir
na especialidade. Mas é para isso que aqueles deputados e deputadas lá estão, e
já não há como voltar atrás. A partir de agora deixou de haver aquele momento
no debate em que se perguntava: "tudo bem, o PCP e o BE não gostam deste
orçamento; mas desde quando gostaram de algum?". Mesmo que não se trate
verdadeiramente de "gostar", esta pergunta passou a ter resposta a
partir de ontem: sabemos com que tipo de orçamento a esquerda se pode
comprometer. Nos seus próprios termos, é um orçamento que cumpre com a
Constituição, começa a inverter o jugo da austeridade e não põe em causa a
presença no euro e na UE. Esse é um dado relevantíssimo para o futuro, porque
ninguém — à esquerda ou à direita — poderá fazer de conta que não existiu.
Em boa medida, a direita tem razão numa coisa: sim, este
orçamento é definido pela oposição polar ao que foi o governo anterior. Mal
estaríamos se não o fosse. A democracia é o regime onde a maioria manda, mas
acima de tudo é o regime onde a maioria muda. Quando a maioria não muda, ou
muda e não manda nada, a democracia não está a funcionar.
Por isso o discurso adjetivado de Passos Coelho, centrado na
ideia da usurpação e ilegitimidade do governo, falha tanto o alvo. De cada vez
que uma maioria de esquerda vota junta, está a fazer-se a prova de que esta
maioria é o resultado legítimo de um voto democrático. E de cada vez que Coelho
se enfia na toca, enfadado, cria mais uma ocasião para a esquerda demonstrar a
coesão da sua maioria.
É isso que a direita parece não perceber na descrição que ela
própria criou da convergência à esquerda. Não interessa se é geringonça.
Interessa se funciona.
Na verdade, geringonça é sempre que alguém tem de chegar a
compromisso com alguém para alguma coisa. A coligação PàF também era uma
geringonça, mas não suficientemente forte para que os portugueses lhe dessem
uma maioria governativa.
Por isso chamem-lhe "geringonça". De cada vez, eu
ouço "democracia". O pior de todos sistemas, etc.