07 março 2016

Mal nos conhecemos (Rui Tavares)

E se o que conhecemos é 'ISTO' esperamos não conhecer mais... digo eu!

 

Estive com Cavaco uma vez. No átrio de Belém uma deputada do PCP parecia nervosa. Eu disse-lhe "sei o que estás a sentir". Ela retribuiu em silêncio: também sabia o que eu estava a sentir.  Éramos os dois da mesma geração; não queríamos conhecer o homem que tinha dominado a nossa adolescência, aumentado as nossas propinas e despejado a polícia sobre nós quando estávamos na Universidade e cuja sombra continuava a pontificar sobre a austeridade do presente e do futuro.

Escrever a crónica de despedida a Cavaco não é uma escolha fácil. Que fazer? Optar por um último desforço, uma última desforra? Rir do que calharam ser os últimos atos do nosso reacionário-mor: indigitar um governo de esquerda, ser forçado a promulgar a co-adoção? Que última malvadez, que última insolência lhe dedicar?

E depois lembro-me de quando Cavaco falou no Parlamento Europeu e não disse nada de que ninguém se lembrasse. Lembrei-me de que um mês antes tivéramos lá o presidente da Irlanda e aplaudíramos emocionados a sua defesa tensa dos valores humanos, a sua linguagem ampla e alta, o seu jeito de homem simples num corpo pequeno com grandeza nos gestos sem arrogância. Que diferença, pensei então. Que tristeza era que o partido de Sá Carneiro não tivesse dado a Portugal e ao Mundo, durante quase quatro décadas, mais do que Cavaco Silva.

E lembro-me desse encontro com Cavaco e como me despedi apenas com alívio e pena.

Sim, Cavaco Silva marcou o país durante trinta e seis anos. Salazar esteve trinta e seis anos contínuos no poder. O marquês de Pombal vinte e cinco. Mesmo entre os reis não há muito quem tenha superado Cavaco: é quase um vigésimo da vida da nação desde que foi reino independente. Não nos lembramos de nenhum terramoto nem ditadura. Mas não deixa de haver uma poalha de mesquinhez que cobre toda a era de Cavaco e que influencia toda a memória que possamos ter dela.
Um exemplo: escrevi um dia que a teimosia dele contra o governo de esquerda era mais "Boliqueime do que Bruxelas".  Juro que era só uma referência ao lugar de nascimento do então presidente. Mas tal é o poder de Cavaco Silva: houve gente zangada comigo achando que eu estava a apoucar Boliqueime.

Sim, o desamor entre a esquerda e Cavaco é correspondido. Claro que sentimos muitas vezes que ele nos pagou da mesma moeda. O seu rancor contra José Saramago. A recusa da pensão a Salgueiro Maia. A referência ao Dia da Raça para o Dia de Camões. A indisfarçada repulsa pelo Portugal de Abril que também nunca o engoliu.

Agora, felizmente, tudo isso é passado. Deixamos para trás esta relação longa e desconfortável e chegamos à conclusão de que, trinta e seis anos depois, mal nos conhecemos. Mas também nunca houve tal vontade de parte a parte. E agora já é mais do que tempo de cada um seguir o seu caminho.

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