E se o que conhecemos é 'ISTO' esperamos não conhecer mais... digo eu!
Estive com Cavaco uma vez. No átrio de Belém uma deputada do PCP
parecia nervosa. Eu disse-lhe "sei o que estás a sentir". Ela retribuiu
em silêncio: também sabia o que eu estava a sentir. Éramos os dois da
mesma geração; não queríamos conhecer o homem que tinha dominado a nossa
adolescência, aumentado as nossas propinas e despejado a polícia sobre
nós quando estávamos na Universidade e cuja sombra continuava a
pontificar sobre a austeridade do presente e do futuro.
Escrever a
crónica de despedida a Cavaco não é uma escolha fácil. Que fazer? Optar
por um último desforço, uma última desforra? Rir do que calharam ser os
últimos atos do nosso reacionário-mor: indigitar um governo de
esquerda, ser forçado a promulgar a co-adoção? Que última malvadez, que
última insolência lhe dedicar?
E depois lembro-me de
quando Cavaco falou no Parlamento Europeu e não disse nada de que
ninguém se lembrasse. Lembrei-me de que um mês antes tivéramos lá o
presidente da Irlanda e aplaudíramos emocionados a sua defesa tensa dos
valores humanos, a sua linguagem ampla e alta, o seu jeito de homem
simples num corpo pequeno com grandeza nos gestos sem arrogância. Que
diferença, pensei então. Que tristeza era que o partido de Sá Carneiro
não tivesse dado a Portugal e ao Mundo, durante quase quatro décadas,
mais do que Cavaco Silva.
E lembro-me desse encontro com Cavaco e como me despedi apenas com alívio e pena.
Sim,
Cavaco Silva marcou o país durante trinta e seis anos. Salazar esteve
trinta e seis anos contínuos no poder. O marquês de Pombal vinte e
cinco. Mesmo entre os reis não há muito quem tenha superado Cavaco: é
quase um vigésimo da vida da nação desde que foi reino independente. Não
nos lembramos de nenhum terramoto nem ditadura. Mas não deixa de haver
uma poalha de mesquinhez que cobre toda a era de Cavaco e que influencia
toda a memória que possamos ter dela.
Um exemplo: escrevi um dia
que a teimosia dele contra o governo de esquerda era mais "Boliqueime do
que Bruxelas". Juro que era só uma referência ao lugar de nascimento
do então presidente. Mas tal é o poder de Cavaco Silva: houve gente
zangada comigo achando que eu estava a apoucar Boliqueime.
Sim, o
desamor entre a esquerda e Cavaco é correspondido. Claro que sentimos
muitas vezes que ele nos pagou da mesma moeda. O seu rancor contra José
Saramago. A recusa da pensão a Salgueiro Maia. A referência ao Dia da
Raça para o Dia de Camões. A indisfarçada repulsa pelo Portugal de Abril
que também nunca o engoliu.
Agora, felizmente, tudo isso é passado. Deixamos para trás esta relação longa e desconfortável e chegamos à conclusão
de que, trinta e seis anos depois, mal nos conhecemos. Mas também nunca
houve tal vontade de parte a parte. E agora já é mais do que tempo de
cada um seguir o seu caminho.
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