Nos últimos 20 anos mais de 200 mil portugueses foram surpreendidos no seu dia-a-dia com um traumatismo craniano grave.
Assistimos a tragédias, ou a algum acontecimento inesperado a alguém que nos é próximo. Mas não nos toca. A vida é de facto como é, sabemos que amanhã poderá ser diferente, mas hoje não.
No seu hoje
em que tudo estava previsto, bem encaixado e encadeado, surge um
inesperado acidente. Atropelamento, acidente rodoviário, um objecto de
obras que nos cai na cabeça, uma queda – algo que nos faz um traumatismo
craniano grave.
E é assim, de repente estamos inconscientes no
hospital e nossos pais, irmãos, esposa largaram tudo o que estava
previsto para esse dia e foram ter connosco ao hospital.
Este é o início da história das muitas pessoas que a Novamente acompanha.
Pensamos que esta é a fase pior e no entanto… há um grande percurso pela frente.
Ao
fim de 3 a 5 anos, que pesam como 30, perdemos os amigos que nos
primeiros dias prometeram nunca nos deixar. A família só sabe de nós em
momentos chave. No hospital experimentamos vitórias, retrocessos,
alegrias, frustrações incríveis. Profissionais que nos tiraram a
esperança, ou que repudiaram o mais possível a nossa presença no
internamento e profissionais cujas palavras humanas não esquecemos.
O
traumatismo afecta o cérebro de forma diferente em cada caso, deixando
sequelas que nos modificam. São pouco cobertos por apoios estatais e só
30% chegam ao centro de reabilitação. A vida, depois de ter sido doente
hospitalar, passa a ser vida de quem quer reabilitar-se.
Além de ter criado o serviço de apoio contínuo,
entrega diferente fase a fase do caminho e do caso de apoio de
informação, apoio emocional, encaminhamento para soluções, etc., a
Novamente também criou formação de cuidadores para que se capacitem dum
papel que nunca imaginaram vir a desempenhar, muito menos na idade
madura, com filhos de 30 anos, que inesperadamente deixaram de ser
independentes e passaram a deficientes, sem emprego, divorciados, com
comportamentos inter-relacionais difíceis, etc.. Aqueles que estavam
casados há 5 anos ou menos não aguentam o casamento.
Agora nasce
um programa de inserção profissional com o IEFP, que tenciona aumentar a
taxa de 30% destes adultos voltarem a trabalhar.
Em vários pontos
do país a Novamente criou o o grupo de pares com o objectivo de
proporcionar a pessoas que sofreram traumatismo crânio encefálico o
desenvolvimento das suas autonomias pessoais através de actividades
ocupacionais, terapêuticas e socioculturais de modo a melhorar a sua
integração na comunidade e no seio familiar.
Aqui, acima de tudo
reaprendem a amar-se, conhecer-se, aceitar-se e a usar técnicas de
melhor relacionamento com o mundo. Estamos, juntos, pessoas sem
comunicação oral, sem marcha e desorientação neurológica, como pessoas
que estão sem nenhuma sequela visível, empregadas, casadas e que
aparentemente não saíram do mundo anterior ao seu traumatismo crânio
encefálico.
Este é o mundo onde o amor dos pais prova ser
incondicional, seja em que circunstancias e idade. Mundo onde quem
ultrapassou barreiras impensáveis aprende a valorizar o ser humano por
algo que nunca é comunicado ou valorizado nos media ou filmes. É um
mundo ou nem interessa se somos diferentes – só interessa se nos amamos e
respeitamos, se temos em quem nos apoiar para avançar pela vida com
coragem.
Voltamos a pensar que o dia está previsto, mas nunca mais esqueceremos que há coisas que não acontecem só aos outros.
Vera Bonvalot, Presidente da Associação Novamente