A
globalização, o protecionismo, o Pingo Doce e o prego no caixão (por José Vítor Malheiros)
“O autêntico novilho
Angus nacional”. À campanha publicitária do Pingo Doce não falta o
carimbo “Produto nacional” a encimar as cores da bandeira nacional. Como
em toda a publicidade, o que conta não é o que se diz mas a mensagem
subliminar, que é clara: os supermercados Pingo Doce apostam na produção
nacional. Alexandre Soares dos Santos pode não gostar de pagar impostos
em Portugal mas quer dar a impressão de que se preocupa com a economia
nacional.
A mensagem só é bizarra porque vejo-me
sempre aflito para encontrar produtos frescos nacionais no Pingo Doce. A
carne de porco nacional aparece nas prateleiras do Pingo Doce quando o
rei faz anos e é preciso um exercício de insistência no balcão do talho
para conseguir que nos digam a origem da carne exposta nas vitrines.
Bifanas, costeletas, lombo, entrecosto? A origem é quase sempre
espanhola. Em Portugal não se produz porco? Sim, mas o Pingo Doce
prefere comprar em Espanha, apesar dos suinicultores portugueses não
conseguirem escoar os seus produtos. Há excesso de produção nacional?
Segundo os suinicultores, não. O porco nacional só cobre 65 por cento
das necessidades, mas mesmo assim importa-se mais porco do que seria
necessário: todas as semanas, dizem os suinicultores, entram em Portugal
24 mil porcos vivos e mil toneladas de carne de porco.
Será
o porco espanhol melhor? Não. O porco nacional é excelente. Será o
porco português tão caro que o seu preço é proibitivo para o Pingo Doce?
É pouco provável, já que a mesma empresa faz uma aposta na cara carne
de novilho. E, mesmo que o porco nacional fosse mais caro, haveria
clientes que o prefeririam ao espanhol. E talvez o Pingo Doce pudesse
fazer pelo porco uma campanha semelhante à que faz pelo novilho
nacional. Mas não é só o porco que é importado. O Pingo Doce vende
frango nacional, mas já os perus nas prateleiras vêm todos da Alemanha e
de Itália. E os ovos que parecem nacionais escondem nos carimbos o FR
de França.
A fruta é outro caso. Há laranjas e toranjas
da África do Sul, pêros Golden de Itália, mamão do Brasil, maçãs
reinetas de França, abacate do Peru, kiwis da Nova Zelândia, limões do
Chile, mangas de Israel, bananas da Colômbia e tudo o que se possa
imaginar de Espanha, ao lado das uvas, pêras Rocha, melões e pêssegos
portugueses. O panorama é o mesmo noutras cadeias de retalho alimentar.
Há
quem chame ao facto de se poder comer morangos e cerejas todo o ano,
vindos do outro lado do mundo, a maravilha da globalização. E a cimeira
do G20 que ontem terminou na China, e todas as cimeiras, batem-se contra
“o proteccionismo” que possa dificultar o comércio mundial. Os países
emergentes e ricos exigem fronteiras abertas para os seus produtos, os
bancos exigem fronteiras abertas, a UE lembra que foi para isso que foi
inventada e os poderes garantem que essa é a única salvação do mundo.
Em
teoria, a liberalização do comércio mundial promove a adopção das
técnicas de produção mais eficientes, o progresso económico e a evolução
tecnológica. São esses os argumentos em defesa do “mercado livre” e de
crítica do proteccionismo. Na prática, porém, a guerra ao proteccionismo
tem outras consequências: em muitos casos, os produtos mais baratos não
o são por serem produzidos de forma mais eficiente mas apenas porque a
sua produção não respeita a protecção dos trabalhadores (salários,
segurança, saúde) nem a defesa do ambiente e, assim, o efeito que
exercem nos mercados onde são vendidos traduz-se numa pressão para a
redução local dos direitos humanos e da protecção do ambiente. Um
retrocesso em vez de um progresso. Veja-se o que se passa na negociação
dos acordos TTIP e CETA, que a União Europeia negoceia com os Estados
Unidos e o Canadá, onde, em nome da protecção do comércio livre, as
grandes empresas mundiais exigem ser dispensadas de respeitar regras
legais, ambientais, laborais e sanitárias, numa atitude criminosa que
põe em causa adquiridos fundamentais da civilização.
Para
além deste impacto, o simples facto de um produto ser transportado
milhares de quilómetros para ser vendido noutro país produz um grau de
poluição cujo custo social é sempre suportado pelos cidadãos, em
benefício das empresas.
Soares dos Santos pode ganhar
mais dinheiro a vender no Pingo Doce os kiwis que compra na Nova
Zelândia, mas esses kiwis só são mais baratos porque o custo do seu
transporte não considera os malefícios causados pelas emissões de CO2
que esse transporte provoca - alterações climáticas, catástrofes
ambientais - que são sempre pagos pelos cidadãos. O proteccionismo cego é
uma má opção, mas a loucura de fazer os alimentos darem uma volta ao
mundo de avião antes de chegarem ao nosso prato está a pregar pregos no
nosso caixão.
Por isso, seria uma boa ideia se Soares
dos Santos e os outros retalhistas, por uma vez, fizessem aquilo que
dizem e se dedicassem mesmo a vender os produtos nacionais. Podem
continuar a enriquecer e o planeta agradece.
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