António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa são ambos
suficientemente inteligentes e pragmáticos para não entrarem numa
disputa inglória.
Naquela fotografia está quase tudo: o olhar
triste de Marcelo, as lágrimas amargas de uma mulher vestida de negro, o
pressentido silêncio de existências subitamente arruinadas, o desespero
de um momento desguarnecido de qualquer esperança. Dificilmente
encontraríamos uma representação mais fidedigna da crueldade dos últimos
incêndios. Ao mesmo tempo, dessa imagem emana uma força que nos
transporta para a ideia de dignidade. Dignidade na atitude de um
Presidente abatido pelas circunstâncias, dignidade no choro contido de
uma mulher calejada pelos sofrimentos de uma longa vida, dignidade no
encontro inesperado de mundos tão distantes. O Presidente da República
revelou uma coisa no decorrer da imensa tragédia que afectou o país
inteiro — por intuição, por intelecção, ou por uma soberba capacidade de
compreensão da angústia colectiva, ele é hoje, de longe, a
personalidade pública em melhores condições para representar aquilo que
de modo um pouco simplista poderemos considerar como a voz da
consciência nacional.
É óbvio que Marcelo Rebelo de Sousa tem consciência do estatuto singular a que se alcandorou no plano do simbólico. Tal estatuto confere-lhe uma especial responsabilidade histórica numa altura em que a dimensão política não está especialmente valorizada, os partidos se encontram numa situação de relativa fragilidade e o próprio Governo em funções assenta numa maioria parlamentar atravessada por múltiplas e manifestas contradições. Estou certo de que a ampla cultura política e jurídica do Presidente da República o impedirá de ceder, seja em que circunstâncias for, à tentação de se perceber a si próprio como uma solução providencial num país em crise. Marcelo conhece o peso e a importância das instituições e nada fará, creio eu, para afectar a credibilidade das mesmas junto da opinião pública. Poderá objectar-se a esta opinião a tese de que há no actual Presidente uma propensão excessiva para o recurso a um discurso que privilegia a aparente neutralidade político-ideológica dos afectos em detrimento de uma abordagem mais identificada com o uso das tradicionais categorias próprias da razão política. É certo que Marcelo recorre amiúde a esse discurso exageradamente emotivo, que não favorece a qualidade da discussão política. Mas essa é apenas uma parte, e a meu ver claramente menor, de um homem político dotado de excepcionais recursos de inteligência e preparação teórica, os quais se empenha aliás em tornar visíveis nos momentos de maior importância cívica e política.
É óbvio que Marcelo Rebelo de Sousa tem consciência do estatuto singular a que se alcandorou no plano do simbólico. Tal estatuto confere-lhe uma especial responsabilidade histórica numa altura em que a dimensão política não está especialmente valorizada, os partidos se encontram numa situação de relativa fragilidade e o próprio Governo em funções assenta numa maioria parlamentar atravessada por múltiplas e manifestas contradições. Estou certo de que a ampla cultura política e jurídica do Presidente da República o impedirá de ceder, seja em que circunstâncias for, à tentação de se perceber a si próprio como uma solução providencial num país em crise. Marcelo conhece o peso e a importância das instituições e nada fará, creio eu, para afectar a credibilidade das mesmas junto da opinião pública. Poderá objectar-se a esta opinião a tese de que há no actual Presidente uma propensão excessiva para o recurso a um discurso que privilegia a aparente neutralidade político-ideológica dos afectos em detrimento de uma abordagem mais identificada com o uso das tradicionais categorias próprias da razão política. É certo que Marcelo recorre amiúde a esse discurso exageradamente emotivo, que não favorece a qualidade da discussão política. Mas essa é apenas uma parte, e a meu ver claramente menor, de um homem político dotado de excepcionais recursos de inteligência e preparação teórica, os quais se empenha aliás em tornar visíveis nos momentos de maior importância cívica e política.
Uma coisa é certa: Marcelo está para ficar e é preciso saber conviver
com ele. As condições dessa convivência vão-se naturalmente alterando
em função da evolução da própria realidade política, económica e social.
Ora, essas condições modificaram-se substancialmente nas últimas
semanas, quer pelos efeitos induzidos pelos resultados das eleições
autárquicas, quer pelas consequências institucionais e políticas
decorrentes da última tragédia dos fogos florestais. Essas
transformações são de tal grandeza que nos levam a perspectivar o início
de uma nova fase da vida política portuguesa.
Contrariamente ao que insinuam as notícias mais recentes, não me parece que essa nova fase possa vir a ser essencialmente marcada por um ambiente de permanente conflito institucional entre o Governo e o Presidente da República. Essa colisão prejudicaria fortemente ambas as partes: Marcelo perderia capital simbólico, o Governo desperdiçaria imenso capital político. Pelo contrário, Marcelo ganha como promotor de consensos e avalizador de grandes pactos de âmbito nacional; o Governo, por seu lado, pode beneficiar muito desta nítida vocação presidencial se isso lhe proporcionar condições para estabelecer novas formas de diálogo com os partidos de direita, sem prejudicar as relações que mantém com os partidos situados à sua esquerda. Por estranho que neste momento possa parecer, poderemos estar prestes a assistir ao surgimento de uma nova e ainda mais original e sofisticada “geringonça” na vida política nacional.
Marcelo Rebelo de Sousa ocupará, no contexto dessa novíssima “geringonça”, um lugar absolutamente central na nossa vida política. Beneficiando enormemente do amplo apoio popular de que dispõe, estará em condições de impor ao Governo e aos partidos da oposição uma agenda pública resultante de uma consensualização prévia de preocupações comuns aos principais agentes políticos portugueses. Foi já o que aconteceu agora, na gestão do período pós-incêndios. Essa autoridade presidencial, exercida nos limites das competências constitucionais, contrariará a tendência para uma excessiva polarização do confronto político, abrirá espaço para entendimentos parlamentares de geometria variável e terá, desde logo, dois efeitos benignos, um no Partido Socialista e no Governo que dele emana e outro no principal partido da oposição, o PSD — libertará o PS de uma excessiva dependência da extrema-esquerda parlamentar e desacorrentará o PSD de uma parte significativa do seu passado mais recente.
Perante as mudanças que se antevêem, é legítimo admitir que iremos
assistir a uma significativa reorganização da nossa vida política e
isso, curiosamente, sem que ocorram alterações ao nível do sistema
partidário. Nestas circunstâncias, um Presidente mais forte gera
energias que libertam e não constrangem, potencia entendimentos até há
pouco considerados impensáveis, favorece a qualidade da discussão
política e contraria propensões maniqueístas demasiadas vezes
verificadas nos últimos anos.
Se tudo correr bem, a novíssima “geringonça” absorverá a velha sem a eliminar, recuperará o chamado arco da governação em torno dos assuntos de maior incidência europeia e económica, contribuirá para uma real valorização da vida parlamentar e permitirá a superação parcial do ambiente algo atávico e anti-reformista que tem prevalecido no decorrer da presente legislatura. Para que tudo suceda desta forma há naturalmente alguns requisitos que precisam de ser preenchidos, à cabeça dos quais um que corresponde a uma exigência liminar — que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa não entrem numa disputa inglória. São ambos suficientemente inteligentes e pragmáticos para o não fazerem. É por isso que é possível olhar para o futuro imediato com uma boa dose de optimismo.
Contrariamente ao que insinuam as notícias mais recentes, não me parece que essa nova fase possa vir a ser essencialmente marcada por um ambiente de permanente conflito institucional entre o Governo e o Presidente da República. Essa colisão prejudicaria fortemente ambas as partes: Marcelo perderia capital simbólico, o Governo desperdiçaria imenso capital político. Pelo contrário, Marcelo ganha como promotor de consensos e avalizador de grandes pactos de âmbito nacional; o Governo, por seu lado, pode beneficiar muito desta nítida vocação presidencial se isso lhe proporcionar condições para estabelecer novas formas de diálogo com os partidos de direita, sem prejudicar as relações que mantém com os partidos situados à sua esquerda. Por estranho que neste momento possa parecer, poderemos estar prestes a assistir ao surgimento de uma nova e ainda mais original e sofisticada “geringonça” na vida política nacional.
Marcelo Rebelo de Sousa ocupará, no contexto dessa novíssima “geringonça”, um lugar absolutamente central na nossa vida política. Beneficiando enormemente do amplo apoio popular de que dispõe, estará em condições de impor ao Governo e aos partidos da oposição uma agenda pública resultante de uma consensualização prévia de preocupações comuns aos principais agentes políticos portugueses. Foi já o que aconteceu agora, na gestão do período pós-incêndios. Essa autoridade presidencial, exercida nos limites das competências constitucionais, contrariará a tendência para uma excessiva polarização do confronto político, abrirá espaço para entendimentos parlamentares de geometria variável e terá, desde logo, dois efeitos benignos, um no Partido Socialista e no Governo que dele emana e outro no principal partido da oposição, o PSD — libertará o PS de uma excessiva dependência da extrema-esquerda parlamentar e desacorrentará o PSD de uma parte significativa do seu passado mais recente.
Se tudo correr bem, a novíssima “geringonça” absorverá a velha sem a eliminar, recuperará o chamado arco da governação em torno dos assuntos de maior incidência europeia e económica, contribuirá para uma real valorização da vida parlamentar e permitirá a superação parcial do ambiente algo atávico e anti-reformista que tem prevalecido no decorrer da presente legislatura. Para que tudo suceda desta forma há naturalmente alguns requisitos que precisam de ser preenchidos, à cabeça dos quais um que corresponde a uma exigência liminar — que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa não entrem numa disputa inglória. São ambos suficientemente inteligentes e pragmáticos para o não fazerem. É por isso que é possível olhar para o futuro imediato com uma boa dose de optimismo.
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