27 junho 2018

esse fulgor baço que é Portugal a entristecer

SÓ PODE MELHORAR!!!

Excepção feita ao jogo frente à Espanha, a selecção nacional deixa-se enredar numa modéstia que não cabe no seu título de campeã da Europa. E diminui-se como se tivesse medo de ser feliz. Tem falta de poesia


De regresso à paz quase monástica de Penza onde, como em Ialta, até os bacilos dormem, já dizia Tchekov, a necessidade de escrever prolonga-me a noite até que o céu vá ficando diáfano da aurora que se anuncia. Muita coisa ficou por escrever depois do Portugal-Irão de segunda-feira, em Saransk, e tanto já deixou, entretanto, de fazer sentido. À distância, há a tentação para resumir ao básico todo o tumulto emocional de um jogo vivido intensamente até ao último dos minutos. A seleção nacional está na fase a eliminar deste Campeonato do Mundo da Rússia e esta é apenas a quarta vez que tal acontece na sua história – motivo mais do que suficiente para cantar hossanas àquele golo parabólico de Quaresma, uma verdadeira “quaresmada”, se me permitem a expressão, um descaramento divino, ponto mais alto de todos os atrevimentos. Quaresma é mesmo assim e, portanto, uma espécie de personagem à parte de um teatro esquematizado e previsto que dá cada vez menos espaço ao improviso e à criação.
Escrevi aqui, antes do jogo frente aos iranianos de Carlos Queiroz, que seria triste retirar ao momento superlativo de Ronaldo a retaguarda imaginativa e impertinente representada por Bernardo Silva e Gonçalo Guedes. É absolutamente verdadeiro que Bernardo passou ao lado dos dois primeiros jogos, assim à moda de um peixe cuja água, de tão saturada, perdeu o O e ficou só com H2, mas esse também é o preço a pagar pelo que foi fazendo tanto no Mónaco como no Manchester City. E como Quaresma tem a alma de artista que Guilherme Arantes fez cantar, vive no mundo da lua e é um génio sonhador e romântico que parece passear-se sobre uma nuvem ligeira e incontrolável, de repente o desafio parecia ganho, controlado e sem motivos para excessivas desconfianças. Não foi nada assim, como sabemos.
Já Gonçalo Guedes são outros quinhentos, como gosta de dizer o povo, de Pitões das Júnias a Estômbar. O seu azougue sarrazina qualquer defesa e, além disso, acrescenta uma capacidade defensiva a um meio-campo que parece andar de botinas forradas a polainas, tão ao de leve vai metendo o pé onde os adversários entram a patadas.
Fernando Santos fez as suas opções – Portugal foi, no primeiro tempo, uma equipa mais dominadora, mais produtiva, mas novamente sucumbiu perante a agressividade alheia. E sujeitou-se ao revés.
Tristeza Há sempre um poema para cada momento da vida e Fernando Pessoa tinha poemas que os momentos exigem. Por isso escreveu: “Este fulgor baço da terra/ Que é Portugal a entristecer/ Brilho sem luz e sem arder/ Como o que o fogo-fátuo encerra”.
Este Portugal de Moscovo e de Saransk (deixo de fora o do Portugal-Espanha de Sochi porque, nele, Ronaldo soltou por si só todas as amarras da alegria como um menino que corre aos saltos para uma festa de aldeia) é triste, de um futebol inerme: espera, espera sempre, como se tivesse medo de ser feliz. Acredita na arrumação geométrica das pedras de um xadrez amorfo, mas não entra pelos caminhos floridos da imaginação. Que lhe falta? Audácia? Sim, também. Verve? Muita, quando Ronaldo não sobe ao patamar da estrela da manhã e se transforma em Urano, o deus que caminhava devagar.
Carlos Queiroz preparou uma equipa carregada em ombros por um público santanário para os paroxismos da histeria, de forma a provocar receio nos portugueses. Durante quase toda a hora e meia da Mordóvia Arena, as diferenças de qualidade individual e coletiva esmoreceram ao ponto de ficarmos perante um equilíbrio tão evidente como mentiroso.
Portugal não fugiu a esse receio. Embrulhou-se nele, usou-o como uma capa de guta-percha na qual as gotas de água das iniciativas iranianas resvalariam sem penetrar no âmago daquela modéstia inaceitável para o campeão da Europa. Os adeptos lusitanos eram poucos mas, com o escoar dos minutos, foram ganhando comichão no sangue. E aí nasce a dúvida. Porque, apesar do apuramento, este é um Portugal de dúvidas e nós vemo-las, igualmente, nas palavras e nas opções do selecionador.

A seleção nacional não pode estar na Rússia para assistir à aventura. Tem de viver a aventura! E só assim a grande viagem que todos sonharam, nem que de forma ténue, continuará ser renovada todos os dias.

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