O Livre é Joacine e Joacine é o Livre?
Quem votou no Livre e elegeu Joacine Katar Moreira tem toda a legitimidade para se questionar em quem é que, afinal, votou. O Livre é um partido perplexo e bipolar. Isto não é o seu fim. É apenas um péssimo início.
A
deputada sobrepõe-se ao programa do seu partido, a cuja direcção
pertence, representa-se a si própria, abstém-se num voto de
condenação dos colonatos ilegais de Israel na Palestina (por não
saber o que é que o Livre defende nesta questão) e falha
a entrega do seu projecto sobre a lei da nacionalidade (uma
prioridade do programa), tão autocentrada que está na admiração
do seu reflexo. A arrogância da deputada é autofágica.
A
perplexidade do Livre é igualmente surpreendente.
Rui Tavares sabe bem o que são
problemas de comunicação desde o seu rompimento com o BE no
Parlamento Europeu e deveria saber que a agenda de Joacine é esta
desde o início: um discurso que condena a história colonial
portuguesa sem ser capaz de lhe acrescentar contemporaneidade ou de
alargar o seu interesse e intervenção a outras causas ou a outros
movimentos sociais.
A
deputada do Livre não
é a criadora do feminismo radical ou
do anti-racismo em Portugal, como tenta fazer crer, ignorando o
trabalho de décadas de outras organizações e activistas. O seu
discurso soa a mero ajuste de contas e padece de um moralismo
autoritário. A capacidade para escutar não será das suas
qualidades mais desenvolvidas.
O
próximo congresso do Livre dir-nos-á se há, de facto, duas
tendências formais, ou não, dentro do partido. Para já, está bem
claro que há, pelo menos, uma bicefalia. Qualquer que seja a
decisão
do conselho de jurisdição
do
partido sobre
acusações trocadas entre a direcção e a deputada será tudo menos
terapêutica para esta relação de comunicação tão difícil.
O
episódio e as suas sequelas certamente que terão os devidos efeitos
secundários num partido que conseguiu eleger um deputado pela
primeira vez, com todo o capital simbólico que isso teve: uma mulher
negra e activista. Quem votou no Livre e elegeu Joacine Katar Moreira
tem toda a legitimidade para se questionar em quem é que, afinal,
votou. O Livre é Joacine e Joacine é o Livre? O Livre é um partido
perplexo e bipolar. Isto não é o seu fim. É apenas um péssimo
início.