06 fevereiro 2023

Há um novo rapaz na cidade.

Chama-se Héctor Bellerín, é jogador de futebol e veio jogar para o Sporting para o lugar de Pedro Porro. É um futebolista improvável: defensor de causas progressistas como a luta LGBTQIA+ e a luta antirracismo. Em vez de carros topos de gama, usa carros elétricos, mas também anda de bicicleta e usa o metro. É vegan e prefere ler livros escritos por mulheres. Gosta de moda, mas, ao contrário da maioria, demonstra percebê-la e saber utilizá-la. Usa marcas caras, mas também compra roupa em segunda mão. Está traçado o perfil de um homem que tem muito para agradar a quem habitualmente não se deixa seduzir pelos protagonistas do futebol.

Mas falta qualquer coisa. Será que a tem? Parece que sim. Bellerín defende o pagamento de impostos e acha que os jogadores de futebol deveriam pagar mais do que o que pagam. E é aqui que está a pólvora.

Na doutrina de Jesus Cristo os ricos não tinham salvação: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.” Notem que um camelo é uma corda muito grossa, usada nos barcos, e não o animal. Alguma esquerda também estabelece essa diferença inultrapassável entre ricos e pobres e fixando a virtude nos segundos. Já a direita adora falar em hipocrisia relativamente a quem se diz de esquerda, mas ocupa uma classe sócio-econômica privilegiada. Mas será que os ricos não podem ser de esquerda e será que não podem ser virtuosos?

Não é preciso apoiarmo-nos em nenhuma ideologia, qualquer cínico pragmático pode constatar isto: as pessoas que auferem mais rendimentos dividem-se entre aquelas que acham que pagam demasiados impostos e as que reconhecem no momento da tributação uma parte fundamental da vida democrática – aquele em que contribuem para o bem comum e para a redistribuição da riqueza. Sucede que são casos raros.

A maioria das pessoas que aufere muitos rendimentos tende a achar que paga demasiados impostos. E as desculpas para isso são mais do que muitas. Uns dizem que não gostam de pagar impostos, porque não acreditam na boa aplicação desses fundos por parte do Estado, outros manifestam-se contra o racional dos escalões no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, etc. O que existe pouco é quem ganhe muito e diga que deveria pagar mais impostos.

Não é preciso apoiarmo-nos em nenhuma ideologia, qualquer cínico pragmático pode constatar isto: as pessoas que auferem mais rendimentos dividem-se entre aquelas que acham que pagam demasiados impostos e as que reconhecem no momento da tributação uma parte fundamental da vida democrática – aquele em que contribuem para o bem comum e para a redistribuição da riqueza

Bellerín preenche todas as cruzes da agenda multicultural e identitária que, fora da esquerda, muitos afirmam também preencher. Não faltam liberais que se afirmam ambientalistas, feministas, antirracistas e, de um modo geral, progressistas. Já muito se escreveu sobre a inutilidade de agendas multiculturais que não têm apego à luta de classes e a uma visão política e económica da sociedade. Subscrevo. Apregoar causas individualizadas é uma armadilha em toda a linha. Qual a validade da luta feminista, se ela não incidir sobretudo nos direitos das mulheres pobres e que ganham menos?

Pois, e sem teorizar e eventualmente sem querer, um jogador de futebol apresentou uma agenda moderna e cada vez mais consensual da esquerda à direita. Está lá tudo. Do ambientalismo à sustentabilidade, a passar pelas causas identitárias. Esta cartilha de causas e lutas pode ser – e é – por muitos confundida com um menu capitalista, como se fosse possível ser liberal e um acérrimo progressista.

Mas tratou de introduzir um detalhe que obriga muitos a recuarem. É que é muito fácil dizerem que são contra o racismo, apesar de fazerem de conta que não sabem que o preconceito racial está profundamente ligado ao preconceito socioeconómico. É muito fácil tratarem cada luta como sendo individualizada e por isso desligada da necessidade de correção das desigualdades sociais, ou seja, da defesa do pagamento de impostos.

Ser progressista não é uma nova versão de ser capitalista nem tão-pouco de ser despolitizado. Ser progressista exige uma visão política e comprometida do mundo. Em que se traduz essa exigência? Na disponibilidade para pagar impostos. É muito concreto e extremamente simples.

Héctor Bellerín também falou sobre a guerra da Ucrânia, mas relembrando que existem outras a que não ligamos nenhuma. E lamenta sermos assim. O que vos estou a tentar dizer é que estamos perante uma novidade no mundo do futebol. Claro que não devemos tratar a novidade com o velho procedimento: o de criar um mito. Mas podemos concordar que existe uma espécie nova na fauna futebolística, o lateral direito de esquerda.

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