O vírus do “e se?” manifesta-se depois de já termos tomado uma decisão. Semeia-nos na cabeça pequenos excertos do que teria sido aquele fragmento da nossa história se tivéssemos escolhido outro caminho em vez daquele pelo qual optámos.
SOMOS FEITOS das escolhas que fazemos. Todos os dias damos por nós presos a um jogo que a força do hábito faz com que quase nos esqueçamos que o estamos a jogar, mas que nem por isso deixa de somar consequências: de entre tudo o que temos pela frente, que escolhas vamos nós fazer? Mal abrimos os olhos pela manhã, começamos logo a tentar acertar; e à hora a que nos vamos deitar, é bem possível que já tenhamos tomado mais decisões do que aquelas que conseguimos contar. Viver é por si só uma escolha, e é essa (a maior de todas) que traz tantas outras atrás dela. Há tantos caminhos possíveis ao longo da vida que é fácil errar em muitos.
Há outra maneira de ver as coisas que é bem mais otimista e dá descanso à cabeça: tomámos sempre as melhores decisões que conseguimos, tendo em consideração todas as hipóteses que tínhamos em mãos. Mas eis que surge um bicho de muitas pernas e braços, que se planta no interior das cabeças inquietas, para fazer a fatídica pergunta: “E se?” Se não soubermos domesticar a pergunta, o vírus do “e se?” alastra-se pelo corpo todo, deixa-nos o peito aos encontrões e afoga-nos em dúvidas. Pontos de interrogação que ganham tamanho e ficam o dobro de nós, até sermos só sombra. O vírus do “e se?” manifesta-se depois de já termos tomado uma decisão. Semeia-nos na cabeça pequenos excertos do que teria sido aquele fragmento da nossa história se tivéssemos escolhido outro caminho em vez daquele pelo qual optámos. Que outra versão de nós é que seríamos se naquele dia tivéssemos escolhido o “sim” em vez do “não”. O “e se?” é uma âncora que nos puxa com força para o fundo, e que faz turvo o caminho que dávamos como certo. Ficamos tão presos ao que não escolhemos que o sítio onde estamos quase parece não ser feito do que é, mas sim de tudo o que podia ter sido.
Juan Cavia
Essa pergunta que nos encurta o prazer do que acabámos de escolher às vezes aparece nas situações mais banais: “e se tivesse aceitado ir sair com os amigos que me convidaram?”, “e se tivesse escolhido outro destino de férias?”; ou em mergulhos mais fundos: “E se eu tivesse arriscado um outro amor em vez deste?” O “e se?” pode ser um formigueiro na cabeça, ou uma febre morna até ao dia em que morremos. Tem vários tamanhos, e pode consumir-nos a alma até sermos só hipóteses que não chegaram a acontecer. Fazer as pazes com isso é trabalho de uma vida inteira, mas nem assim é certo que tenha o efeito tranquilizante tão desejado.
Por cada decisão que tomamos há pelo menos mais uma que estamos a rejeitar. Estamos a dar um passo numa direção que pode nem sempre ser a melhor, mas que foi a que mais nos seduziu de entre todas. Escolher é saber dizer que não a muitas histórias, é arriscar uma porta num corredor onde estão duas ou mais. Mas há uma armadilha que se esconde em cada escolha: só depois de a validarmos é que podemos começar a descobrir se acertámos ou não. É um mergulho para o escuro, onde não há água ou nada que se pareça à vista para amortecer a queda. Antes do salto apenas podemos avaliar se o queremos dar, mas nunca o que nos espera no embate. Uma má escolha pode ser um peso que quase nos deixa sem respirar, porque tem o requinte de malvadez de ter estado sempre ali, mesmo ao lado de uma escolha boa. Estavam todas à distância de um braço, mas o instinto fez com que nos debruçássemos para espreitar uma delas, aquela que julgávamos ser a que nos cumpria mais. E nesse espaço de nada, o “e se?” espreguiça-se para se mostrar de dentes à mostra e olhos semicerrados.
No meio de tantas estradas que ficaram à espera de serem percorridas por nós, resta-nos o descanso de sabermos que aquelas por onde andámos hão-de ter somado sempre qualquer coisa. Mesmo que nem sempre tenham sido as melhores, foi o facto de terem sido acidentadas que nos ajudou a apurar mais as escolhas que vieram a seguir. Afiaram a nossa intuição. Escolher mal às vezes pode acrescentar mais do que escolher bem, embora só se consiga ver isso depois do tempo fazer o seu trabalho.
O “e se” pode engolir-nos, porque não nos traz nada que não seja o que já não há maneira de ser. Projeta-nos para um futuro paralelo onde nos podemos ver, mas onde não podemos ser. A felicidade esconde-se naquilo que fazemos com as escolhas que fizemos. Sabê-las imperfeitas é meio caminho andado para adormecer a pergunta que está sempre a querer espreitar. Às vezes tenho inveja dos que são imunes a este vírus, como se a vida deles fosse quase só feita de certezas. Mas depois penso: e se eu precisar dessa dúvida para ter a certeza?
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