11 agosto 2023

Quem não se comoveu com os jovens e com Francisco está seco por dentro



1.

Faz hoje uma semana que o Papa Francisco chegou a Portugal.

Parece que foi ontem e numa outra vida - o tempo tem esta particularidade, o de ser lento e rápido, o de parecer correr como uma tartaruga e de, ao mesmo tempo, acelerar como uma lebre.

Mais de um milhão de miúdos e menos miúdos celebraram o Papa e uma ideia de transcendência, mais de um milhão conheceram Portugal e voltaram aos seus países, milhares morreram esta semana e milhares nasceram em todo o mundo, milhões continuam à deriva, mas é verdade que milhões continuam a acordar todos os dias com uma enorme vontade de ser parte ativa no futuro.



2.

O Papa chegou há uma semana a Portugal para o

seu último grandioso tango.

Um homem bonito e imponente mesmo numa cadeira de rodas.
Um homem carismático e que nos faz embarcar na esperança mesmo quando temos uma relação distante com Deus.

Também ele já não está, regressou ao Vaticano, regressou a um exílio afetivo, como gosta de pensar quando lembra a sua juventude em Buenos Aires, as correrias com uma bola no pé, a mãe a chamar por que o almoço estava na mesa.

Ele regressou e com ele o som de milhares e milhares de jovens que me encantaram e fizeram bastas vezes sorrir.

3.

No meu monólogo "Ficheiros Secretos" recordo Eugénio de Andrade num breve momento.

No final de uma manhã o poeta levou-me à sua biblioteca numa casa na Foz. Havia som de crianças e eu perguntei-lhe se se incomodava com o ruído daqueles gritos infantis.

E Eugénio, incrédulo, respondeu-me à pergunta com uma outra pergunta.

- "Ruído? Como poderia incomodar-me com o som da vida quando em mim a morte está sempre tão presente?".

Tenho pensado em Eugénio por estes dias, nesta sua frase que é tão clara acerca do modo como nos posicionamos.

Porque ao ouvir, ver e ler o que pensam algumas pessoas sobre o que aconteceu nestas Jornadas da Juventude, sobre o som dos jovens na cidade, sobre o caos que provocaram, sobre o custo da operação, sobre o conluio do Estado com a Igreja, sobre a hipocrisia, sobre o bando de putos fanatizados, sobre a vergonha...

... ao ouvi-los lamentei por eles, pela sua incapacidade de entender o que se passa na rua, a sede de vida de milhares de jovens que acreditam, que continuam a acreditar, numa ideia de bem.

Que estão com Francisco, um homem que diz as coisas que diz.
Que encontraram motivos para acreditar que a vale a pena o combate e o confronto com o fatalismo.

4.

Como não ficar comovido com o som da vida?
Com o tumulto das gargalhadas e das canções?
Com os bandos de miúdos abraçados e com os olhos muito abertos à procura de cada recanto de Lisboa, do Porto, de Coimbra, do Algarve, do Alentejo?

Como é possível que tudo isso não tivesse sido suficiente para aplanar esta vontade de dizer mal, de estar sempre do contra, de ser ácido e cínico, de não dar descanso ao fígado, de não descansar de si próprio?

Sou muito heterodoxo, mas com a convicção enorme numa ideia de esquerda.

Acreditando também que a vida se faz construindo pontes com quem não é como eu, com quem não pensa como eu.

Mas sendo de esquerda e não religioso, acreditando que a vida se constrói mais pela força coletiva do que somos do que por qualquer desígnio divino, não posso deixar de ficar incrédulo com o modo como uma certa esquerda perdeu a capacidade de se emocionar com o som da vida de que falava Eugénio de Andrade.

Francisco voltou ao Vaticano e os miúdos tornaram às suas casas e devolveram-nos o silêncio.

O que somos pode ser definido pelo que esse silêncio nos transmite.

Um vazio ou um alívio.

O vazio de alguma coisa vital nos ter abandonado.
Ou o alívio por finalmente nos termos visto livres de gente ruidosa que nos lixou as rotinas.

Um pouco como aquelas pessoas que nos olham de lado e se queixam aos empregados do restaurante quando as nossas crianças as incomodam por serem crianças.

Ser de esquerda não é estar do lado dos "velhos do Restelo".
Ser de esquerda é compreender e reconhecer quando se ouve o som da vida - mesmo que seja o som da vida de quem não é como nós.


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