Numa altura em que se tentam descobrir tantas e tão perversas maneiras de baixar a garimpa à liberdade, comemorar o 25 de Abril não é só importante – é fundamental. Para que um dia não sintamos saudades daquilo que só demos pela falta quando já lá não estava.
UMA PESSOA só se dá conta do que lhe faz falta quando já não tem. É uma sombra que não nos larga. Quando temos o que nos foi fácil, o corpo vai-se habituando a não saber ser de outra forma. Acomoda-se às certezas, e não suspeita da leveza com que o tabuleiro vira em menos de nada; e aquilo que sempre lá esteve, rapidamente fica uma memória longínqua de um tempo em que estava lá tudo. Quando as coisas que precisamos estão longe, choramos aos céus pelos dias em que as tivemos à mão. Sonha-se com o que não se tem, pelo desejo do que se podia ser.
O 25 de Abril aconteceu quando eu ainda não estava cá para saber a falta que ele me iria fazer. Foi uma revolução que plantou a geração livre da qual faço parte, e que deu ao País as cores que lhes tinham sido roubadas durante tantos anos. Já nasci em liberdade, num País que ainda estava a aprender a voltar a andar. Há gerações que não sabem o que podem perder, porque não sabem o que têm; e quando não se sabe o muito que está em jogo, aposta-se de olhos fechados. A ignorância é inimiga do povo, mas é a melhor amiga dos que se aproveitam dele.
A liberdade é traiçoeira, porque vai ficando invisível com o tempo. De tanto lá estar, deixa de se ver. Mas é quando a confiança se agiganta que o tropeço acontece, porque já não se olha para o chão a ver se há pedras que possam fazer o corpo tombar. Olha-se só para a frente e para cima, e confia-se que se está tudo em pé, é porque não há nada capaz de nos levar ao chão. É essa a angústia de se ser livre sem se saber – a de não imaginar sequer o que será acordar um dia e não se ter o que tínhamos por garantido. Passaram-se 50 anos desde que Portugal abriu em flor, e neste ano – mais do que em todos os outros – há que dar corpo e voz à palavra que se fez invisível por estar sempre segura; para que ela não seja só uma ideia vaga, mas antes os alicerces que não tremem mesmo quando tudo o resto cai. Não é só quando se perde a liberdade que se deve lutar por ela – é sobretudo quando a temos que devemos tomar conta dela com o respeito e a dedicação que merece. Falar dela, dar-lhe o valor que ela tem, tomar-lhe o pulso e semeá-la em todos os que passam por nós, para que a levem e falem dela por onde quer que passem.
O 25 de Abril não foi um dia, foram vários anos de sufoco que gritaram todos juntos, ao mesmo tempo, num só dia. Juntaram-se tempos de sofrimento, medo, restrições, denúncias, segredos, palavras proibidas, sonhos esmorecidos e amores perdidos. Grupos de pessoas que não se podiam juntar para falar ou discutir ideias, a falta da liberdade de expressão, uma mulher casada que não podia sair do País sem a autorização do marido, a proibição de beber Coca-Cola, as multas para quem se beijasse na rua, a homossexualidade proibida e criminalizada, a proibição do uso do isqueiro sem o pagamento de uma licença. Parecem tudo coisas que estão muito longe, num tempo que não volta. Mas os tempos que não voltam, mandam sempre notícias de longe. Perguntam como está tudo por cá, e mandam dizer que um dia aparecem para matar saudades.
Juan Cavia
A minha filha mais nova, que aos 9 anos aprende o muito que aconteceu antes de ela chegar, chegou hoje a casa com um poema que escreveu no intervalo da escola. Pedi-lhe se podia partilhar o que ela tinha escrito, e ela disse-me que sim.
“Com o L de Liberdade, e com o V de Vitória,
o povo lutou pelo País da memória.
Hoje em dia não somos obrigadas a usar saias.
Podemos usar calças, T-shirts e calções.
Com os cravos nas armas ganhámos liberdade.
Hoje podemos beber Coca-Cola, e brincar com todas as coisas.
O 25 de Abril mudou tudo o que existe.”
O texto comove-me por uma razão muito concreta, que não é a óbvia: a minha filha não gosta de Coca-Cola, mas fica feliz por saber que quem gosta, a pode beber. Fez questão de dedicar uma parte do poema a uma coisa que não lhe traz felicidade, mas que sabe que pode trazer a quem a rodeia. A beleza numa idade pura como esta, consiste na alegria de ver os outros terem aquilo com que sonham. Depois, aos poucos, vamos construindo uma redoma, e vamos tomando conta só da nossa pequena e inútil liberdade. Ficamos prisioneiros do que queremos para nós. Mas só se é verdadeiramente livre quando todos à nossa volta também o são.
Numa altura em que se tentam descobrir tantas e tão perversas maneiras de baixar a garimpa à liberdade, comemorar o 25 de Abril não é só importante – é fundamental. Para que um dia não sintamos saudades daquilo que só demos pela falta quando já lá não estava
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