As férias são o presente que recebemos por termos passado o ano a envelhecer a dobrar com o trabalho que depositaram em cima de nós. Achamos que são sempre curtas, que ficam mais pequenas de ano para ano, mas aceitamos, porque somos bons a queixarmo-nos, mas melhores a obedecer.
ANDAMOS A ARRASTAR o ano inteiro às costas na esperança de depois sermos livres, seja lá o que isso quer dizer. Até lá somos o que podemos, enquanto podemos. Acordamos e vamos resolver os problemas que estão à nossa espera no trabalho, uma secretária cheia de respostas por dar, pontos de interrogação à nossa volta, outros de exclamação a espetarem-nos as costas, e nós de cabeça erguida a lutar contra o tempo e contra todos. Somos traídos pela miragem dos dias de férias, um céu magenta que vai ficando cada vez mais longe quando damos sinais de o querermos agarrar; e como um cavalo cansado que segue o caminho que conhece sem pensar, enfiamos a cabeça no computador para que até lá o tempo não tenha o peso do tempo todo que ainda falta.
As férias são o presente que recebemos por termos passado o ano a envelhecer a dobrar com o trabalho que depositaram em cima de nós. Achamos que são sempre curtas, que ficam mais pequenas de ano para ano, mas aceitamos, porque somos bons a queixarmo-nos, mas melhores a obedecer. Somos fáceis, dão-nos pouco e sabe-nos a muito. Se ainda trabalhamos é porque queremos que cheguem os dias em que finalmente nos vemos livres de tudo, em que acordamos e temos as horas todas por nossa conta, sem que nos digam o que fazer com elas. A recompensa é curta, para o tanto que custou a lá chegar. Nas férias somos felizes porque podemos fazer de conta que mandamos em tudo o que somos. É uma gloriosa ilusão, que nos agiganta e contesta tudo o que fizeram de nós até lá chegarmos. E então, como um grito de alegria contra a avalanche que é o peso dos dias, vingamo-nos sendo melhores pais, melhores amigos, melhores maridos e mulheres, melhores tudo, porque podemos enfim ser aquilo que desde pequeninos achámos que era isto de ser adulto. Dá muito trabalho conseguir chegar inteiro até ao solitário mês de férias que nos espera, depois de uma batalha campal que se arrastou pelos outros onze. São longos meses a contrariar o que o corpo quer, e o que a cabeça precisa. E depois, quando finalmente lá chegamos, fazemos o máximo que conseguimos, tentamos que eles estiquem até ficarem do tamanho dos outros tantos que nos roubaram. Vingamo-nos em excessos, a tentar compensar as muitas horas em que a nossa cabeça achou que não ia conseguir mais, em que o nosso corpo se arrastava entre a casa e o trabalho, numa coreografia cansada de quem já não pensa, só faz, para que não haja nada a apontar. Será que no fim, quando se fizerem as contas, não nos vamos sentir roubados?
Assaltam-nos o pouco tempo que temos para andar por cá, e ainda esperam que andemos por aí com a alegria de quem é dono de si. A que porta é que vamos bater quando percebermos tudo o que perdemos? As férias são um parêntesis, uma sombra de descanso que tenta como pode disfarçar o peso do que nos espera lá fora, na vida real. Agarramos na alegria toda que andámos a juntar, e andamos pela rua com a leveza ilusória de quem sabe que amanhã é tudo nosso outra vez. Estamos tão mal-habituados que damos por nós a fazer contagens decrescentes de cabeça, para tentar perceber quanto é que ainda nos resta até à apneia dos dias de trabalho. Passamos a vida a obedecer, à procura de aprovação, que nos achem mais e melhores do que aquilo que achamos de nós próprios. Somos tão frágeis, tão perigosamente frágeis, dependentes dos outros para que possamos fazer qualquer coisa de nós. Só somos verdadeiramente livres quando nascemos, a partir daí é sempre a perder. Há dias em que achamos que ninguém manda em nós, era o que faltava, agora vai ser outra pessoa a dizer o que faço, o que sou, quando sou. Mas depois de nos passar o delírio, lá voltamos a responder ao email antes que nos despeçam, antes que já não nos queiram mais. Só somos livres quando nascemos e quando morremos, entre uma coisa e outra somos o melhor que conseguimos. É por isso que as férias valem tanto – devolvem-nos a fantasia de controlarmos os dias, a frágil ideia de sermos o que prometemos a nós mesmos, de sermos o que queríamos, donos e senhores de nós.
E no fim arrumamos a custo tudo no carro, porque já sabemos aquilo que nos espera. Fazemo-nos à estrada, e levamos na memória aquilo que conseguimos juntar nos dias felizes que estão a ficar para trás com a paisagem. Chegamos a casa, e vemos em todo o lado as marcas dos dias repetidos que estiveram ali à nossa espera. As contas costumam bater certas: o descanso há-de durar o mesmo tempo do bronze que temos na pele. Ou menos, muito menos.
Foi tão bom que custa a acreditar que agora só daqui a um ano, se nos voltarem a deixar.
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico