Alice Miller, no seu texto de 1999, afirma que a verdade liberta os seres humanos, as pessoas. Mas liberdade para quê? Talvez para o caminho do engano e da falsa verdade que o adulto tenta transferir aos pequenos, por causa do seu próprio temor. Ou, por causa da sua própria dor. O adulto nem sempre entende o que é a realidade e pretende transferir o seu entendimento, para fugir da tristeza que certos processos da vida lhe causam. A morte é um deles. Especialmente, a morte do pai ou da mãe do adulto. Os grandes ficam presos nos seus sentimentos, do amor que têm e tiveram e vão continuar a ter, pelo adulto desaparecido. Essa dor faz com que disfarcem o real perante os mais novos, facto que me faz pensar noutra ideia de Alice Miller, a de 1981: não deves saber que…?
Nós, adultos, parecemos possuir a verdade que liberta, não está nos livros, está na vida e no decorrer do nascimento até partirmos para outro sítio. Qual o lugar, quem vamos ver outra vez, onde está a pessoa amada? Mas será que uma criança coloca esta pergunta? Nós, adultos, não temos resposta perante a morte. Para nós é um sentimento, uma comoção. Um terramoto nas nossas vidas, como se o chão nos fugisse. É um sentimento de emotividade sem definição, de perda. Perda que tem um nome: o luto dos pais. Porque, antes de sermos pais, somos filhos. Em consequência, amamos, confiamos, procuramos apoio no corpo, nas ideias e nas palavras dos nossos pais. Quando em criança se perde um avô, há um adulto que perde um pai. Bem sabemos que os pais fazem tudo por nós: trabalham, trazem o alimento necessário. O alimento é a guloseima do nosso dia-a-dia, com a qual os pais nos adoçam a vida, fazendo do nosso quotidiano um prémio difícil de entendermos, devido à nossa tenra idade. Nós, adultos, ao sofrermos uma perda familiar, sofremos toda uma história de vida transcorrida entre simpatia, louvores, punição ou açoites. Castigo que, em criança, parece injusto, mas que, já crescidos, sabemos entender como linha de orientação dos nossos deveres. Essa história não é por nós percebida, não temos conceitos para entender. Parece-nos natural que os nossos adultos andem fora de casa ou nos seus afazeres domésticos dentro do lar. Afazeres em que nós colaboramos, ou esquecemos por não sabermos como se faz, nem percebermos o tempo usado na construção da vida. Era para nós natural o silêncio dos inocentes, frase que não é minha, mas que uso para definir as conversas nas quais nós, em pequenos, não participamos porque os pais não nos querem preocupar devido à nossa curta idade. Curta idade em palavras, em emoções, em entendimento do cálculo matemático para organizar esse processo chamado vida. Vida que transcorre entre mais pessoas do que apenas as de casa: visitas, parentes, amigos, essa aceitação de nós feita pelos outros. Esses outros definidos pelos adultos para entrarem ou não em contacto com os mais novos, seleccionados num pronto-a-vestir, à nossa medida de entendimento, prazer, confiança, harmonias retiradas da vida para nós crescermos em segurança e simpatia. A ausência do pai é a silenciosa opção dentro de vida social que o adulto escolhe ou é obrigado a escolher: lição da qual nada sabemos até ao dia de sermos nós próprios a sentarmo-nos na cadeira que voa entre tanto ser humano que devemos saber hierarquizar para com eles agir ou não. Normalmente, enquanto crescemos, perguntamos quem são os nossos amigos; há uma opção desse adulto para nos informar do que é melhor e o que o não é. Nem sempre aceitamos as ideias e rebelamo-nos contra a autoridade paterna. Autoridade sabida para aceitar a rebelião, mandar ou um grito ou um violento não, desses que fazem chorar e retiram-nos a confiança do mais velho. Mais uma lição que nos ensina essa liberdade necessária para sermos autónomos e conduzir as nossas vidas sem mágoa ou tristezas, em tempo e altura de sermos nós próprios a escolher o que mais gostamos e desdenhar do que não tem interesse.
Lição que o nosso adulto maior sabe ensinar ao retirar da sua prática o que foi a sua própria forma de lidar com os seus, nos dias da sua infância, quando o processo de vida era construído de uma outra maneira. Às vezes, sem recursos; às vezes, a saber cuidar do que possui. Lições que esses adultos um dia nos deixam ao passarem para uma outra vida. Lições que ficam em nós, da mesma maneira que eles ficaram dentro das nossas ideias e sentimentos. Se a criação for bem sucedida.
Pequena, não há escola de pais: temos que a inventar. A escola é esse dia-a-dia que decorre do nascimento à morte; do berço à caixa ou ânfora que guarde o nosso corpo. A escola, enfim, é a calma que usam os nossos adultos para confrontar os dissabores que acontecem na História conjuntural que nos coube viver e que é sempre diferente do passado vivido pelos nossos adultos. Quando partem, o nosso pranto é o luto pela escola perdida. A morte, tão natural, é essa parte da vida que é preciso confrontar com serenidade e sem aflição, se a lição quotidiana foi sábia e não escondida em abstracções, deduções, induções, essa teoria da vida que, diz Alice Miller, o adulto prefere escolher para não se comprometer na afectividade. Não foi por acaso, minha pequena, que comecei com teoria: para dizer que a transferência de uma vida à outra, é um reajustamento para as nossas próprias vidas que, estou certo, sabemos fazer à medida da emotividade dos nossos adultos para connosco.
A morte do avô passa a ser uma mudança de vida que causa tristeza, luto, solidão e silêncio, até a vida retomar o seu andamento no mesmo sítio, dia e hora da entrada na nova forma de estar. A morte é a melhor lição possível de dar, se a entendermos com carinho e aceitarmos que há dor nas nossas alegres vidas. Essa alegria fica escondida dentro de nós e derramamos lágrimas em silêncio, sem desespero, com a calma e serenidade de uma boa morte de quem viveu bem e com amor, passa desta vida a outra, sem nós sabermos. É assim a morte do avô: a sua derradeira grande lição de amor e alegria no fundamental convívio que tece o nosso futuro. Seca o pranto, ouve, entende e aprende. O avô fica contente, e os seus também.
Raúl Iturra!
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