Pedra de Canto
Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro?
Flor menina de orvalho em amor verdadeiro?
Ainda terás amor e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro...
Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violada violeta, a breve miosótis
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te como ela,
Que é maior do que tu no canto
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!
Mas, antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada ou nina morta,
Enfim, o teu amor?
Dize lá, sem-vergonha,
Homem singelo:
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)
Vitorino Nemésio, in “Obras Completas”
Vi o Alçada Baptista, um Boémio de Espírito (é isso... também gostava de ser assim designado... BOÉMIO DE ESPIRÍTO!!!) num documentário gravado na zon (é impressionante como tudo mudou em 20 e tal anos: vhs, mega drives, telemóveis, gente...)
em cima da bike e fiquei a achar que quem viveu nas gerações passadas tem bem mais nível que nós, Zé Marias e afins.
TALVEZ SIM ou TALVEZ NÃO...
António Alçada Baptista, ensaísta, ficcionista e memorialista
António Alçada Baptista nasceu na Covilhã a
29/01/1927. Frequentou um colégio de jesuítas e licenciou-se em Direito.
Foi presidente do Instituto Português do Livro. Tornou-se conhecido
como autor com a publicação do primeiro volume da obra Peregrinação
Interior? Reflexões sobre Deus (1971). Com a eleição de Jorge Sampaio
para Presidente da República, foi nomeado seu colaborador.