13 agosto 2014

O Cerne (por Rui Tavares)

Um dos valores mentais que mais importa preservar a qualquer momento é a possibilidade de uma atenção concentrada e indivisa. Há quem diga que ela está em risco hoje. Ela foi difícil sempre.

Trata-se da atenção sem esforço, mas hiper-produtiva, do caminhante que se dedica a pensar em nada. Na primeira meia hora de caminhada acompanham-nos as preocupações e distrações de fora, enleadas umas nas outras. Depois elas vão desaparecendo uma a uma, como véus que caem, e ficamos sozinhos com o nosso eu. E finalmente o nosso próprio eu parece ceder o passo a um estado de abertura às coisas. Não terminaremos a caminhada com coisas resolvidas — isso seria utilitário. 

Mas, quem sabe?, passado dias ou semanas começaremos a ver mais claro e talvez nos venhamos a lembrar de que foi ali, naquela caminhada, que o nosso estado mental começou a permitir essa clareza.

Curiosamente, são os dois homens a quem mais se creditou a confusão da era moderna — Voltaire e Rousseau — que melhor simbolizam este pêndulo entre confusão e simplicidade, penumbra e clareza. Rousseau, nos Devaneios do Caminhante Solitário, fermentando em pensamentos; Voltaire, no Candide, depois de uma tormentosa volta ao mundo, encontrando uma verdade simples: precisamos de cultivar o nosso jardim.

Dizemos dos nossos tempos que são de complexidade — eu escrevi-o aqui muitas vezes, e acredito nisso. Mas vale a pena a pergunta: serão os tempos de complexidade ou seremos nós que temos pouco tempo para ver claro? Temos tanta sede de informação, e tantas fontes por onde saciá-la, que raramente conseguimos separar para nós um período de atenção indivisa. E por isso raramente dizemos que é simples. Não caminhámos o suficiente para chegar à simplicidade.

Que aconteceria se o fizéssemos? Qual seria o equivalente, hoje, a cultivar o nosso jardim? Que Portugal e que Europa resultariam desse exercício? Que vida quereríamos viver no nosso tempo, no nosso mundo?

Aí talvez começasse a despontar o cerne. Em vez de encolher os ombros com um país que "é assim mesmo", quereríamos um Portugal altamente educado, com o seu território ordenado e requalificado, com uma gestão razoável dos seus recursos, com uma sociedade mais igual e justa, onde fosse mais fácil fazer planos: de família, de carreira ou de vida. Independente do que acontecesse fora, esse Portugal tentaria sempre ser um bastião de tolerância, de civismo e democracia. Esse Portugal lutaria pela democracia também na Europa, inovando nos instrumentos de cidadania para uma União que agora está de costas voltadas para as pessoas. Ao contrário do que aconteceu recentemente com a escolha do novo comissário europeu, cada momento de decisão na Europa seria para nós um momento de participação e pedagogia informada.

Na vida que quereríamos para o nosso tempo e o nosso mundo as escolhas seriam muito diferentes. Em vez de um mundo mercantilizado, calculista e desumano, daríamos prioridade a erradicar as grandes fontes de sofrimento. Uma epidemia como a do vírus Ébola teria sido desde o início uma grande emergência mundial. E os nossos diplomatas, portugueses e europeus, trabalhariam para ajudar a derrotá-la.

Não acredito que víssemos de imediato os meios de fazer isso tudo. Não encontraríamos logo — nem talvez nunca — as soluções definitivas. Mas ao menos saberíamos que temos para onde caminhar.

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