Não te quero prender ao
chavão da deficiência. Disseste tu. Ao que respondi isto: Estou
inserido no grupo dos deficientes, tenho conhecido gente com muita qualidade!
Fiquei a pensar no que é isto de me ter tornado Deficiente (palavra feia e a evitar): é
o contrário de eficiente, somos todos Deficientes de uma forma ou de outra. Não
podermos voar nem viver debaixo de água sempre é muito pouco eficiente para um
pássaro ou um peixe. No entanto, há deficiências mais valorizadas do que
outras, e cuidado com a utilização desta palavra porque pode ser ofensiva.
Ninguém gosta de ser deficiente mas… somos todos Humanos e partes do mesmo Todo
quando temos vontade de estar com os outros mas com liberdade para nos
recolhermos quando queremos estar mais conosco.
Não é preciso passar pelo Estado deficiente para valorizares
o estar vivo mas quando mudas de estado por acidente ou doença ou nasces
diferente, resta-te aproveitar o caminho e tirar partido disso/dele. E
valorizas. Somos todos diferentes na idade, no género e vivemos em sítios
diferentes, com línguas e gestos diferentes, tudo é diferente.
E tenho aprendido a valorizar muita coisa que tinha por
garantida. É tão bom existir, respirar, expirar e inspirar. Andar, só andar
descontraído, sem pensar em cada gesto, é tão belo ver as pessoas a sorrirem
contentes por mais um passo dado por ti, por nós, sozinho, sem apoio.
‘Vai-se andando’ diz-se muito por aí com ar de quem ‘olhe, lá
vamos vivendo…’, nunca puderam andar e não conseguiram ou só quando eram
pequenos e não se lembram; gosto de brincar com esta expressão e dizê-la de
forma alegre: cá vou andado e é muito bom e não é fácil, é difícil! Se fosse
fácil não teria piada.
Cada passo dividido em pequenos gestos pelo corpo e seus
equilíbrios, cada pessoa e corpo tem qualquer coisa de divinal: a voz com muito
ar ganho na barriga e transportado até à boca; as ancas, joelhos, perna direita
e esquerda, cada pé.
Tornar-me
parte do grupo dos que precisam de cadeira de rodas é entendido como privilégio
e dá-me olhares cúmplices de ‘já passei por isso mas vais conseguir andar
melhor’, mesmo se queres deixá-la, foi muito importante a dada altura. ‘Os teus
melhores passos serão os piores de amanhã…’
Não
deixares o estares privado do normal ser entendido como perca de valor: ser
diferente (somos todos tão diferentes, felizmente) não deve ser encarado por
pior.
Dizer
que há vantagens em ter tido este acidente de carro com obtenção de um TCE (Traumatismo
Crânio Encefálico) e não andar e não falar não será o mais óbvio nem evidente
mas passei a ver o mundo doutra forma, com mais tempo, menos apressado, e o
passado e presente como que foi revisto ou ganho de uma outra forma. Foi um
admirável mundo novo! Tenho um TCE… Não é para todos!
O
corpo humano é incrível.
A andar e falar: cada passo, cada som ouvido, cada
sílaba e palavra dita. Cada olhar, ver cada imagem, é tudo fabuloso e dado por
óbvio. Ganhei dificuldades na fala e na mobilidade: obriga a estar melhor, mais
direito, mais atento a cada gesto, a cada pessoa e com mais tempo; ‘há males
que vêm por bem’. ‘Casa roubada, trancas à porta!’ Com os cuidados que preciso
ganhei sempre muita gente à minha volta a ter cuidado comigo e o cuidado demonstrado
por quem precisa é das formas mais bonitas que existem de demonstrarem amor.
Passo a dar outra importância/valor a cada palavra e tê-la como preciosa e por
saborear. Há gente que escolheu para a vida fazer o bem e ajudar os outros,
imagino que deve dar bem-estar chegar ao fim do dia e recordarmos tanta gente a
melhorar por nossa causa.
A
sociedade recebe gerações que crescem e envelhecem e vão mudando, encontra
outras forças quando dá por limitações que tem. A sociedade pode e deve ser
entendida como um corpo a melhorar, como um todo unido. Fazemos parte dela,
juntos e separados. Hoje em dia e agora, estamos na melhor altura para poder
agir unidos, estamos com condições, que os nossos pais crianças não tiveram,
para comunicar e viver em democracia, sendo a democracia a melhor forma
inventada/construída para sairmos da nossa intimidade e individualidade.
A
educação ser cada vez mais acessível a todas; a internet, os telemóveis, os
transportes são os exemplos mais imediatos que me vêm à cabeça.
Encontramos
novas formas de viver/de nos sustentarmos quando estamos em alturas de crise,
fome e/ou guerra, doenças.
Como
o estado líquido, o gasoso ou o sólido, o corpo humano muda/mudou e adquire
diferentes estados.
Adquire
primeiro um egocentrismo como se fosses o centro do mundo (quando a
incapacidade é ganha e te tornas menos válido).
Depois
superas isso e passas por espaços por espaços com gente com outras limitações,
todos temos limitações, não poder voar é um exemplo disso mesmo.
Depois
percebes que podes dar valor ao ser humano com uma outra noção que não tinhas
antes.
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