14 dezembro 2014

não te quero prender ao chavão da Deficiência



Não te quero prender ao chavão da deficiência. Disseste tu. Ao que respondi isto: Estou inserido no grupo dos deficientes, tenho conhecido gente com muita qualidade!
 
Fiquei a pensar no que é isto de me ter tornado Deficiente (palavra feia e a evitar): é o contrário de eficiente, somos todos Deficientes de uma forma ou de outra. Não podermos voar nem viver debaixo de água sempre é muito pouco eficiente para um pássaro ou um peixe. No entanto, há deficiências mais valorizadas do que outras, e cuidado com a utilização desta palavra porque pode ser ofensiva. Ninguém gosta de ser deficiente mas… somos todos Humanos e partes do mesmo Todo quando temos vontade de estar com os outros mas com liberdade para nos recolhermos quando queremos estar mais conosco.

Não é preciso passar pelo Estado deficiente para valorizares o estar vivo mas quando mudas de estado por acidente ou doença ou nasces diferente, resta-te aproveitar o caminho e tirar partido disso/dele. E valorizas. Somos todos diferentes na idade, no género e vivemos em sítios diferentes, com línguas e gestos diferentes, tudo é diferente.

E tenho aprendido a valorizar muita coisa que tinha por garantida. É tão bom existir, respirar, expirar e inspirar. Andar, só andar descontraído, sem pensar em cada gesto, é tão belo ver as pessoas a sorrirem contentes por mais um passo dado por ti, por nós, sozinho, sem apoio.

‘Vai-se andando’ diz-se muito por aí com ar de quem ‘olhe, lá vamos vivendo…’, nunca puderam andar e não conseguiram ou só quando eram pequenos e não se lembram; gosto de brincar com esta expressão e dizê-la de forma alegre: cá vou andado e é muito bom e não é fácil, é difícil! Se fosse fácil não teria piada.

Cada passo dividido em pequenos gestos pelo corpo e seus equilíbrios, cada pessoa e corpo tem qualquer coisa de divinal: a voz com muito ar ganho na barriga e transportado até à boca; as ancas, joelhos, perna direita e esquerda, cada pé.

Tornar-me parte do grupo dos que precisam de cadeira de rodas é entendido como privilégio e dá-me olhares cúmplices de ‘já passei por isso mas vais conseguir andar melhor’, mesmo se queres deixá-la, foi muito importante a dada altura. ‘Os teus melhores passos serão os piores de amanhã…’

Não deixares o estares privado do normal ser entendido como perca de valor: ser diferente (somos todos tão diferentes, felizmente) não deve ser encarado por pior.

Dizer que há vantagens em ter tido este acidente de carro com obtenção de um TCE (Traumatismo Crânio Encefálico) e não andar e não falar não será o mais óbvio nem evidente mas passei a ver o mundo doutra forma, com mais tempo, menos apressado, e o passado e presente como que foi revisto ou ganho de uma outra forma. Foi um admirável mundo novo! Tenho um TCE… Não é para todos!

O corpo humano é incrível.

A andar e falar: cada passo, cada som ouvido, cada sílaba e palavra dita. Cada olhar, ver cada imagem, é tudo fabuloso e dado por óbvio. Ganhei dificuldades na fala e na mobilidade: obriga a estar melhor, mais direito, mais atento a cada gesto, a cada pessoa e com mais tempo; ‘há males que vêm por bem’. ‘Casa roubada, trancas à porta!’ Com os cuidados que preciso ganhei sempre muita gente à minha volta a ter cuidado comigo e o cuidado demonstrado por quem precisa é das formas mais bonitas que existem de demonstrarem amor. Passo a dar outra importância/valor a cada palavra e tê-la como preciosa e por saborear. Há gente que escolheu para a vida fazer o bem e ajudar os outros, imagino que deve dar bem-estar chegar ao fim do dia e recordarmos tanta gente a melhorar por nossa causa.

A sociedade recebe gerações que crescem e envelhecem e vão mudando, encontra outras forças quando dá por limitações que tem. A sociedade pode e deve ser entendida como um corpo a melhorar, como um todo unido. Fazemos parte dela, juntos e separados. Hoje em dia e agora, estamos na melhor altura para poder agir unidos, estamos com condições, que os nossos pais crianças não tiveram, para comunicar e viver em democracia, sendo a democracia a melhor forma inventada/construída para sairmos da nossa intimidade e individualidade.

A educação ser cada vez mais acessível a todas; a internet, os telemóveis, os transportes são os exemplos mais imediatos que me vêm à cabeça.
Encontramos novas formas de viver/de nos sustentarmos quando estamos em alturas de crise, fome e/ou guerra, doenças.

Como o estado líquido, o gasoso ou o sólido, o corpo humano muda/mudou e adquire diferentes estados.

Adquire primeiro um egocentrismo como se fosses o centro do mundo (quando a incapacidade é ganha e te tornas menos válido).

Depois superas isso e passas por espaços por espaços com gente com outras limitações, todos temos limitações, não poder voar é um exemplo disso mesmo.

Depois percebes que podes dar valor ao ser humano com uma outra noção que não tinhas antes.

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