Cavaco tinha a oportunidade perfeita para sair a bem... eleger o governo de direita ou esquerda e ficar quieto e sossegado a esperar que não dessem por ele... qualquer um dos cenários tinha defesa e gerava elogios e barulho de um ou outro lado... com a declaração que fez pôs em causa a imparcialidade do cargo que desempenha e pôs em causa o povo que elegeu a AR que maltratou num comentário anti democrático a la Cavaco... e criou barulheira em todo o lado: juntou a esquerda (como não queria) criando um clima instável.
Pacheco Pereira diz isto...
1. O que fez o Presidente da República na sua declaração foi dar uma
chicotada nos portugueses – por singular coincidência, a maioria – de
que ele considera não ser o Presidente. Não foi uma chicotada
psicológica, mas uma chicotada real. Ao justificar a sua decisão de
indigitar Passos Coelho primeiro-ministro – uma decisão em si acertada –
com uma declaração de exclusão da vida pública do BE e do PCP e, por
arrasto, do PS, abriu uma crise política e institucional cujas
consequências estão longe de ser adivinhadas.
2. Embora não o
tenha dito explicitamente, disse com clareza suficiente que não dará
posse a um Governo PS-BE-PCP, com maioria parlamentar, que ele entende
ser maldito, sugerindo que, mesmo que o Governo PSD-CDS não passe na
Assembleia poderá deixá-lo em gestão até que haja condições para haver
novas eleições. O facto de apenas o ter subentendido pode indicar que
possa recuar, mas o tom agressivo das suas considerações faz com que, se
o fizer, isso equivalha a uma gigantesca manifestação de incoerência e
impotência, em si mesma um factor de instabilidade.
3. Mais:
significa que, ao indigitar Passos Coelho, não está apenas a proceder a
um acto normal pelo facto de a coligação ter ganho as eleições, o que é
em si mais que aceitável, está a fazê-lo para que este permaneça no seu
lugar de governo, sem poderes e em conflito permanente com a maioria
parlamentar, por longos meses. Cavaco Silva inaugura em Portugal uma
prática que já tinha péssimos precedentes na Europa: a de que se fazem
todas as eleições precisas até que o resultado seja satisfatório. Ou
seja, até que ganhem aqueles que se consideram os detentores naturais do
poder, até que o PSD-CDS ganhe com maioria absoluta.
4. Num só
acto o Presidente garantiu longos meses de instabilidade política, um
confronto permanente entre instituições, uma enorme radicalização da
vida política, e tornou-se responsável pelas consequências económicas
que daí advenham. A aceitarem este rumo, Cavaco Silva e Passos Coelho
passam a ser os principais sujeitos dos efeitos negativos na economia e
na sociedade, desta instabilidade, enquanto se poderia considerar que
seriam António Costa e a maioria de esquerda os responsáveis, caso
existissem esses mesmos efeitos como consequência de um seu Governo.
5.
Cavaco Silva ajudou a inverter a vitimização de que o PSD-CDS precisava
em termos eleitorais, e este é apenas um dos efeitos perversos da sua
comunicação. Na verdade, o que é ainda mais grave é que se mostrou
disposto a deteriorar a situação económica do país, e a sua posição face
aos “mercados”, que até agora não reflectiram o catastrofismo do
discurso interno do PSD-PS e externo do PPE, e que, se agora o começarem
a fazer, é porque o Presidente abriu uma frente de guerra e de
instabilidade que dificilmente se resolverá.
6. Outro dos efeitos
perversos da comunicação presidencial foi dar uma enorme contribuição
para que no PS, no BE e no PCP se perceba, com uma clareza meridiana, o
que está em jogo e que estão sob um ataque sem tréguas destinado a
eternizar a direita no poder, com todos os meios e recursos, de que esta
dispõe e que hoje são muitos. A direita teve dois milhões de votos,
menos do que a esquerda, mas mesmo assim reveladores de que existe a seu
favor um importante movimento de opinião pública, a que se começa a
apelar à mobilização, mesmo para o local onde até agora não existia, a
rua. A agressividade desses apelos revela que compreendeu que a
possibilidade de haver uma expressão política conjunta à esquerda que
ultrapasse as divisões históricas que a separavam é um muito sério risco
para uma hegemonia que consideravam garantida pela fusão dos votos do
CDS e do PSD.
7. Nunca, desde o 25 de Abril, um Governo serviu a direita ideológica e dos interesses como o tandem troika-PSD/CDS.
Nunca foi tão grande a troca mútua de serviços entre a “Europa” e a
direita política. Comandada pelos partidos do PPE, a começar pelo alemão
e os seus aliados, com destaque para o PP espanhol, que tem um directo
interesse em impedir a contaminação da política do PS no PSOE e das suas
alianças, a “Europa” é hoje um dos mais importantes factores de perda
de democracia e de suporte a favor de uma ideologia autoritária, a do
“não há alternativa”. Os partidos do PPE estão dispostos a tudo e farão
tudo o que puderem, até porque receiam que se possa minar o apoio que
até agora os partidos socialistas deram às diferentes variantes do “não
há alternativa”. Começou na Grécia, por muito mal que tenha corrido,
continuou no Labour, e chega agora à Península ibérica.
8. A
aliança do PSD-CDS com os interesses económicos consolidou-se como
nunca. Os passeios de Sócrates com os empresários, muitos que agora
andam atrás de Passos, Portas e Pires de Lima, são uma brincadeira de
meninos com o que se passa hoje. Sócrates distribuiu favores e benesses,
Passos e Portas, apoiados na troika, mudaram as regras do jogo
em áreas decisivas para o patronato que precisa de poder despedir sem
grandes problemas, baixar salários e contar com uma enorme pool
de trabalho precário, e de uma ecologia fiscal e social favorável aos
“negócios”. Deram-lhes um incremento de legitimação ao propagandearem
uma economia que era feita apenas de empresas, empresários e
“empreendedorismo”, mas em que os trabalhadores são apenas uma maçada
uma vez por mês para pagar salários. Ofereceram-lhes uma voz política
como nunca tiveram, e uma voz em que a “economia” passou a significar
governar como eles governaram, ou seja, a “economia” exige que se
governe à direita, e em que os “mercados” passaram a estar acima da
democracia e do voto. Ninguém melhor do que Mario Draghi lhes respondeu a
semana passada, ao lembrar que se a “instabilidade” podia ser má para a
economia, a democracia era mais importante. Até para a economia.
9.
E nunca até agora uma poderosa máquina ideológica e comunicacional
existiu para proteger estes interesses económicos e políticos. Desde os think tanks
conservadores cada vez mais agressivos, em universidades e fundações,
todos com considerável financiamento, até uma comunicação social que, da
imprensa económica às televisões generalistas, se tornou quase
unanimista no apoio ao Governo PSD-CDS.
10. Outro dos efeitos
perversos da comunicação presidencial foi condicionar a próxima eleição
presidencial ao dilema da dissolução ou não da Assembleia. Só a
importância deste dilema, que dominará essas eleições, revela o erro de
cálculo do PS, que decidiu render-se, por fragilidades internas, nesse
confronto e entregar de graça a Presidência ao candidato da direita e da
comunicação social. Pagarão um preço caro por tal opção.
11. Por
último, o Presidente, com a sua declaração de guerra, terá a guerra que
declarou. Ao apelar à desobediência dos deputados do PS, tornará muito
difícil que eles desobedeçam, sob pena de se tornarem párias no seu
próprio partido. Ajudou a consolidar a vontade do PS, BE e PCP de
defrontarem em comum o PSD-CDS, e abriu espaço para a imediato anúncio,
que ainda não tinha sido feito, de que o PS apresentaria uma moção de
rejeição. Favoreceu que, entre PS, BE e PCP, haja mais capacidade de
compromissos face a um adversário comum e uma maior consciência de que
só um Governo PS que possa durar permite a todos, e não só ao PS,
superarem a quebra de legitimidade política resultante de o PSD ser o
maior partido e de não terem claramente antevisto esta solução antes de
eleições.
12. Onde a mensagem do Presidente – sugerindo, mesmo que
não o diga com clareza, que possa manter o Governo Passos Coelho em
gestão até novas eleições – é mais grave é no confronto que faz à
Assembleia da República. É que se o Governo pode estar em gestão, a
Assembleia não o está. É detentora dos seus plenos poderes
constitucionais. Pode não só impedir a legislação oriunda do Governo,
como pode ela própria legislar e avocar muitos actos que o Governo venha
a praticar. Ou seja, numa situação de conflito entre um Governo que
recusou e os seus próprios poderes, a Assembleia pode “governar” sem
limitações em muitas matérias. E que fará o Presidente? Veta de gaveta,
devolve os diplomas, manda para o Tribunal Constitucional? Os
precedentes que este conflito pode gerar mostram como a comunicação
presidencial está, ela sim, no limite do abuso e da usurpação de
poderes.
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