Mostra-me
como te moves no teu espaço e eu dir-te-ei quem és. Este ano, podia ter
sido este o mote da habitual mesa que a Festa Literária Internacional
de Paraty (FLIP) dedica à arquitectura, por onde já passou, em 2013, o
Pritzker português Eduardo Souto de Moura. Juntos em palco estiveram
Francesco Careri – que formou em Roma o colectivo Stalker/Osservatório Nomade e é o autor do livro Walkscapes: o caminhar como prática estética – e a arquitecta e académica Lúcia Leitão,
que no seu trabalho utiliza a psicanálise e a interpretação proposta
por Gilberto Freyre para pensar as cidades brasileiras contemporâneas.
Há dez anos que o arquitecto italiano dá um curso na Universidade de Roma a que se chamou Arti Civiche (artes cívicas). É sempre dado na rua, até os exames. Professor e alunos encontram-se uma vez por semana e caminham durante um dia inteiro até ao pôr-do-sol, com paragem para um piquenique. Percorrem em média 11 quilómetros em cada etapa e, uma semana depois, recomeçam do ponto onde terminaram. Andam a esmo, sem direcção. Caminham com “um olho estrábico” que, como explica Careri, olha para tudo aquilo que os pode desviar do percurso marcado: “Normalmente é esse olho que vence, é ele que nos leva para as áreas mais interessantes."
Quando se caminha ou se percorre uma cidade de carro atravessam-se lugares que não correspondem à ideia que temos dela. Careri diz que temos “amnésia urbana”, porque esses lugares são rapidamente apagados do nosso mapa mental. “O que faço desde 1995 com os meus alunos e com o meu grupo Stalker [título inspirado no filme homónimo de Andrei Tarkovsky] é entender que existem regiões de sombra, que há uma parte escondida – um inconsciente da cidade.”
Nesses percursos há sempre algo a descobrir. O arquitecto lembra que existem fenómenos urbanos que não estão nos livros de urbanismo, sociologia urbana, antropologia ou geografia. São fenómenos móveis, ou cujas necessidades foram atendidas e por isso deixam de existir. A única maneira de os encontrar é perdendo-nos na cidade. “Todos podemos fazê-lo, basta sair-se de casa com esse espírito explorador”, acrescenta Careri. Só que andar para além do limite "é uma acção ilegal": "Se eu fizer nos Estados Unidos o que faço em Itália posso ser preso, porque lá a propriedade privada é sagrada. Para nós, latinos, é mais ambígua. Podemos jogar com os limites e com as fronteiras. E se conseguirmos passar por cima dessa fronteira vamos descobrir que existe um caminho novo. Fiz isso na Bahia e em São Paulo e estou vivo."
Logo que começa o curso, conta, costuma perder todos os alunos anglo-saxónicos ou alemães, absolutamente incapazes de ultrapassar o primeiro muro de propriedade privada com que se deparam. Oitenta por cento do curso realiza-se em lugares onde não se pode entrar. Os latinos costumam ficar. No final do percurso, que demora um semestre inteiro, o professor pede aos alunos que escolham um espaço onde queiram intervir arquitectonicamente. Costumam dizer-lhe que sentem que a sua geografia mental se ampliou. A ideia que tinham de cidade, com buracos e espaços vazios, ficou preenchida. A amnésia urbana desapareceu.
É também por isso que o professor, que em 2009 esteve a fazer um destes percursos em Lisboa, costuma pedir aos alunos que desinstalem dos seus computadores o AutoCAD, um programa de desenho usado para realizar projectos. “Hoje, as nossas faculdades produzem os chamados 'CAD monkeys', macacos do CAD, arquitectos que ficam no computador de auscultadores, a olhar para o ecrã e a obedecer às ordens de um chefe, normalmente uma archistar – que pode ser um Frank Gehry ou um Jean Nouvel – e cujo único desejo é um dia vir a ser como eles."
Talvez não seja possível actualmente fazer-se arquitectura sem computador, mas Careri assegura que os seus alunos saem do curso com “liberdade de imaginação”.
Muitas pessoas optarão por não caminhar pelas cidades por causa do que isso implica. Como lembrou Lúcia Leitão, andar na cidade “é obrigatoriamente ter o outro em face”. Há mesmo um autor americano que diz que uma cidade sem lugares para caminhar é uma cidade sem lugar para a alma. E essa é uma marca da cidade brasileira. “Porque, na realidade, nós nos constituímos como sociedade negando a rua”, argumenta a arquitecta, explicando que, na história do Brasil, a rua era o lugar “que só os escravos frequentavam, tinha um uso servil e uma função plebeia”. Isso acabou por se inscrever na sociedade como uma marca identitária e daí a dificuldade que existe, no Brasil contemporâneo, de se conviver com a diferença: “Como nos negámos a viver a rua, também não aprendemos a dimensão básica da urbanidade que é reconhecer a diferença. Abrimos mão disso e em consequência somos uma sociedade mais pobre."
A arquitectura não é nem nunca foi neutra. Também “não nasce do brilhantismo do arquitecto, por mais competente que ele seja”. No traço do arquitecto “está embutido” tudo o que ele é e toda a cultura de onde vem. “No Brasil colonial habituámo-nos a viver o espaço privado – porque a rua era do plebeu – e na contemporaneidade isso foi revisto e actualizado com a criação de condomínios fechados – contra a rua, contra o outro, contra quem não tem a mesma classe social ou a mesma educação. A isso acrescenta-se a construção dos centros comerciais onde as pessoas podem fazer tudo sem sair de lá."
O arquitecto italiano contrapôs que na Europa a realidade ainda é diferente da dos países da América Latina ou dos Estados Unidos. “Caminha-se em qualquer lugar, o território é nosso, porque o reivindicámos”, disse, lembrando que ensinar a caminhar é um grande acto de democracia.
Mas a Europa enfrenta outros problemas. Já no final da conversa, houve perguntas do público sobre a crise dos refugiados, questionando se através da reorganização do espaço arquitectónico é possível incluir os que chegam numa cidade. Francesco, que acompanha o fenómeno migratório já há quase 20 anos, contou que em 1999, com o seu grupo, ocupou um edifício no centro de Roma, um ex-matadouro da cidade, para o abrir a refugiados curdos. “Recuperámos o edifício para mostrar que era possível construir um espaço hospitaleiro para os refugiados. Continua lá. É a obra de arquitectura mais importante que realizei com o Stalker/Osservatório Nomade. Habitualmente os campos de refugiados estão a 50 quilómetros das cidades. Este centro era administrado pelos curdos e sem se pedir um tostão à economia pública. Criámos um modelo para acolher.”
Hoje, diz o arquitecto, é urgente reorganizar as cidades europeias: abandonar os campos de refugiados que parecem prisões e construir bairros interculturais onde seja possível encontrarmo-nos com o outro.
Há dez anos que o arquitecto italiano dá um curso na Universidade de Roma a que se chamou Arti Civiche (artes cívicas). É sempre dado na rua, até os exames. Professor e alunos encontram-se uma vez por semana e caminham durante um dia inteiro até ao pôr-do-sol, com paragem para um piquenique. Percorrem em média 11 quilómetros em cada etapa e, uma semana depois, recomeçam do ponto onde terminaram. Andam a esmo, sem direcção. Caminham com “um olho estrábico” que, como explica Careri, olha para tudo aquilo que os pode desviar do percurso marcado: “Normalmente é esse olho que vence, é ele que nos leva para as áreas mais interessantes."
Quando se caminha ou se percorre uma cidade de carro atravessam-se lugares que não correspondem à ideia que temos dela. Careri diz que temos “amnésia urbana”, porque esses lugares são rapidamente apagados do nosso mapa mental. “O que faço desde 1995 com os meus alunos e com o meu grupo Stalker [título inspirado no filme homónimo de Andrei Tarkovsky] é entender que existem regiões de sombra, que há uma parte escondida – um inconsciente da cidade.”
Nesses percursos há sempre algo a descobrir. O arquitecto lembra que existem fenómenos urbanos que não estão nos livros de urbanismo, sociologia urbana, antropologia ou geografia. São fenómenos móveis, ou cujas necessidades foram atendidas e por isso deixam de existir. A única maneira de os encontrar é perdendo-nos na cidade. “Todos podemos fazê-lo, basta sair-se de casa com esse espírito explorador”, acrescenta Careri. Só que andar para além do limite "é uma acção ilegal": "Se eu fizer nos Estados Unidos o que faço em Itália posso ser preso, porque lá a propriedade privada é sagrada. Para nós, latinos, é mais ambígua. Podemos jogar com os limites e com as fronteiras. E se conseguirmos passar por cima dessa fronteira vamos descobrir que existe um caminho novo. Fiz isso na Bahia e em São Paulo e estou vivo."
Logo que começa o curso, conta, costuma perder todos os alunos anglo-saxónicos ou alemães, absolutamente incapazes de ultrapassar o primeiro muro de propriedade privada com que se deparam. Oitenta por cento do curso realiza-se em lugares onde não se pode entrar. Os latinos costumam ficar. No final do percurso, que demora um semestre inteiro, o professor pede aos alunos que escolham um espaço onde queiram intervir arquitectonicamente. Costumam dizer-lhe que sentem que a sua geografia mental se ampliou. A ideia que tinham de cidade, com buracos e espaços vazios, ficou preenchida. A amnésia urbana desapareceu.
É também por isso que o professor, que em 2009 esteve a fazer um destes percursos em Lisboa, costuma pedir aos alunos que desinstalem dos seus computadores o AutoCAD, um programa de desenho usado para realizar projectos. “Hoje, as nossas faculdades produzem os chamados 'CAD monkeys', macacos do CAD, arquitectos que ficam no computador de auscultadores, a olhar para o ecrã e a obedecer às ordens de um chefe, normalmente uma archistar – que pode ser um Frank Gehry ou um Jean Nouvel – e cujo único desejo é um dia vir a ser como eles."
Talvez não seja possível actualmente fazer-se arquitectura sem computador, mas Careri assegura que os seus alunos saem do curso com “liberdade de imaginação”.
Muitas pessoas optarão por não caminhar pelas cidades por causa do que isso implica. Como lembrou Lúcia Leitão, andar na cidade “é obrigatoriamente ter o outro em face”. Há mesmo um autor americano que diz que uma cidade sem lugares para caminhar é uma cidade sem lugar para a alma. E essa é uma marca da cidade brasileira. “Porque, na realidade, nós nos constituímos como sociedade negando a rua”, argumenta a arquitecta, explicando que, na história do Brasil, a rua era o lugar “que só os escravos frequentavam, tinha um uso servil e uma função plebeia”. Isso acabou por se inscrever na sociedade como uma marca identitária e daí a dificuldade que existe, no Brasil contemporâneo, de se conviver com a diferença: “Como nos negámos a viver a rua, também não aprendemos a dimensão básica da urbanidade que é reconhecer a diferença. Abrimos mão disso e em consequência somos uma sociedade mais pobre."
A arquitectura não é nem nunca foi neutra. Também “não nasce do brilhantismo do arquitecto, por mais competente que ele seja”. No traço do arquitecto “está embutido” tudo o que ele é e toda a cultura de onde vem. “No Brasil colonial habituámo-nos a viver o espaço privado – porque a rua era do plebeu – e na contemporaneidade isso foi revisto e actualizado com a criação de condomínios fechados – contra a rua, contra o outro, contra quem não tem a mesma classe social ou a mesma educação. A isso acrescenta-se a construção dos centros comerciais onde as pessoas podem fazer tudo sem sair de lá."
O arquitecto italiano contrapôs que na Europa a realidade ainda é diferente da dos países da América Latina ou dos Estados Unidos. “Caminha-se em qualquer lugar, o território é nosso, porque o reivindicámos”, disse, lembrando que ensinar a caminhar é um grande acto de democracia.
Mas a Europa enfrenta outros problemas. Já no final da conversa, houve perguntas do público sobre a crise dos refugiados, questionando se através da reorganização do espaço arquitectónico é possível incluir os que chegam numa cidade. Francesco, que acompanha o fenómeno migratório já há quase 20 anos, contou que em 1999, com o seu grupo, ocupou um edifício no centro de Roma, um ex-matadouro da cidade, para o abrir a refugiados curdos. “Recuperámos o edifício para mostrar que era possível construir um espaço hospitaleiro para os refugiados. Continua lá. É a obra de arquitectura mais importante que realizei com o Stalker/Osservatório Nomade. Habitualmente os campos de refugiados estão a 50 quilómetros das cidades. Este centro era administrado pelos curdos e sem se pedir um tostão à economia pública. Criámos um modelo para acolher.”
Hoje, diz o arquitecto, é urgente reorganizar as cidades europeias: abandonar os campos de refugiados que parecem prisões e construir bairros interculturais onde seja possível encontrarmo-nos com o outro.
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