03 novembro 2016

"O jornalismo trocou a grandeza da oferta pela tirania da procura" ( Luís Miguel Queirós 01/11/2016)


O volume de informação cresce a um ritmo imparável, mas a sua diversidade e fiabilidade podem estar a diminuir, defende o especialista em ciências da comunicação Dominique Wolton, que lança o alerta: “A informação está a ser comida por uma ideologia técnica, e é preciso resgatá-la”.


 
Fundador do Instituto de Ciências da Comunicação do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e director da revista internacional Hermès e da respectiva colecção de livros de bolso, Les Essentiels d’Hermès, Dominique Wolton é autor de dezenas de obras sobre os media, o espaço público, a globalização, ou as relações entre ciência, técnica e sociedade. A mais recente, Communiquer c’est vivre, acaba de sair em França. Colaborador próximo do filósofo e politólogo Raymond Aron, Wolton vem construindo há décadas uma original teoria da comunicação, que procura opor uma abordagem democrática e humanista à hegemonia do discurso técnico e económico. Convidado do Fórum do Futuro – um “festival de pensamento”, organizado pelo pelouro da Cultura da Câmara do Porto que abre esta terça-feira com o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura –, o investigador estará esta quinta-feira no Teatro Rivoli (19h), para falar do “desafio de paz e guerra no século XXI”, e dará no dia seguinte uma palestra em Lisboa, no auditório do Instituto Superior de Economia e Gestão, sobre o “impacto das redes sociais na comunicação”. Diz que é preciso travar o fascínio acrítico pelas tecnologias da informação e defende que a Internet precisa de regras, pois “actualmente é um faroeste que só serve a tirania económica e financeira”.  


Diz que “a velocidade da Internet e das redes sociais está a devorar a liberdade de informação” e que o jornalismo não deveria mergulhar nessa voragem. Quer argumentar?

A Internet é óptima para nos exprimirmos, mas expressão não é informação, é algo muito mais fácil. Separar os dois é função do jornalista. Ele deve olhar para a Internet como um novo meio de expressão e ter consciência de que, enquanto canal de informação, exige um trabalho de verificação. A última coisa de que os jornalistas se podem esquecer é que a informação é algo de valioso e difícil, que deve ser feito por profissionais.


Defende que a revolução tecnológica aumentou o volume de informação, mas não a tornou mais diversa, nem reduziu os rumores, que encharcam a Internet e são frequentemente replicados nas televisões e jornais. É uma fatalidade, imposta pelo contexto técnico, ou haveria outro caminho?
Não é uma fatalidade. Na verdade, é até uma grande surpresa. Pertenço a uma tradição democrática favorável ao aumento da informação, e todos nós, investigadores, jornalistas, políticos, achávamos que mais informação era mais verdade: toda a luta pela liberdade de informação, desde o século XVII, foi concebida a partir dessa premissa. Mas ninguém antecipou que o aumento da velocidade e a pressão da concorrência implicavam riscos, e que a informação em directo, que julgávamos mais próxima da verdade, podia afinal errar muito, porque não há tempo para verificar. Também não se pensou que quanto mais informação existisse, tanto mais rumores teríamos, porque os homens são complicados e há muita gente que se está nas tintas para a informação verificada e prefere os rumores e as teorias da conspiração. Outra surpresa foi a constatação de que todos os canais de informação falam das mesmas coisas ao mesmo tempo e que a crescente concorrência entre eles não tem servido para alargar o campo da informação. Dou um exemplo: a construção política da Europa, esta realidade de 6, 8, 15, 28 países que se entenderam, quando na verdade se detestam, é talvez a maior utopia da história da humanidade, mas com toda a informação que hoje circula na Internet parece que já não há curiosidade por este grande projecto político.

E por que é que isso acontece?
Acontece porque a procura se tornou o critério. E quando nas redacções não se trata este ou aquele assunto porque não interessa às pessoas, está-se a trocar a responsabilidade da oferta, que é a grandeza do jornalismo, pela tirania da procura. Mas o mais grave é não existir um discurso crítico sobre isto. Estas são questões verdadeiras, que colocam problemas graves ao nível da deontologia, e até da democracia, mas só por as levantarmos somos vistos como reaccionários. Uma coisa que me deixa tristíssimo é ver os jornalistas a passarem horas na Internet, a darem a volta ao computador em vez de darem a volta ao mundo, quando fariam muito melhor em sair e investigar. É verdade que sair do jornal três ou quatro dias para investigar é caro, fazer bom jornalismo é caro, e essa é uma questão política que teremos de enfrentar, porque a informação está a ser comida por uma ideologia técnica, e é preciso resgatá-la.

Apesar das dificuldades que os jornais de referência ocidentais enfrentam para assegurar a sua viabilidade financeira, não parece partilhar o pessimismo mais ou menos consensual que não vê futuro para a imprensa generalista em papel e desespera de ver surgir, no jornalismo on-line, uma solução estável e replicável. O que é que o leva a manter o optimismo?
Não sou pessimista porque a história mostra que há altos e baixos, e acho que o jornalismo tomará consciência de que a abundância de informação não é por si só um progresso, e que o terreno que essa informação cobre é hoje mais estreito do que nos anos 80. Os media deixaram de se interessar por uma série de assuntos importantes, e cada vez dão menos espaço aos pontos de vista especializados – dos militares, religiosos, empresários, cientistas –, em favor dessa “peopleização” mundial a que estamos a assistir [neologismo criado a partir do inglês “people”, que significa “povo” ou “pessoas”, e que os media costumam usar para designar as suas secções de “celebridades”]. Há uma fascinação pelas tecnologias de informação que é preciso travar: não é a tecnologia que faz a informação, são os homens. Eu acho que o jornalismo acabará por reagir e saberá tirar desta revolução técnica o que ela tem de bom.

Uma das lutas da sua geração foi garantir a existência de uma fronteira nítida entre o domínio público e a esfera privada. Não receia que esta nova geração, que cresceu com as redes sociais, venha a ter uma consciência um pouco mais frágil dos riscos de se permitir que essa fronteira se esfarele?
Lutámos durante séculos até termos, enfim, o direito a uma existência privada, e agora, com as tecnologias de informação e com o fenómeno da "peopleização", passamos a vida a publicitar a vida privada. É um contra-senso. E se esta geração não percebe que é preciso preservar essa separação, isso é grave, porque essa fronteira foi um verdadeiro campo de batalha, e conseguir impô-la representou uma grande vitória política. Não é por hoje ser possível contar seja o que for nas redes sociais, e haver quem o leia, que devemos fazê-lo. Diante do computador temos uma sensação de liberdade, mas dever-nos-ia preocupar a contradição entre esse sentimento de liberdade e o facto de a Internet ser dominada pelo poder económico, financeiro e técnico do Google, da Apple, do Facebook, da Amazon.

No mundo das redes sociais vive-se uma espécie de igualitarismo, em que não há fronteiras nem hierarquias e todas as vozes têm o mesmo peso. Quando uma parte importante do debate público emigrou para esta arena digital, e a sua lógica contamina cada vez mais os media, está aberto o caminho ao populismo?
Sim, há o risco do populismo. Nas redes sociais toda a gente se exprime em condições de igualdade, o que é aparentemente democrático, mas, na verdade, ao abolir-se toda a hierarquia cultural ou intelectual, o que existe é uma tirania da expressão. O que há a fazer? É preciso que jornalistas, professores, empresários, políticos, tenham a coragem de dizer que este espaço de expressão é um progresso, mas que não substitui as competências do político, do militar, do cientista, do jornalista. O que eles têm a dizer sobre a sociedade não pode ser posto no mesmo plano do que eu digo sobre mim próprio num qualquer canto do planeta.

Não é impossível que o aproveitamento da Internet pelo terrorismo e pelo crime organizado, entre outras ameaças, leve as democracias a ponderar colocar restrições à sua utilização, como já acontece, por outros motivos, em várias ditaduras. Parece-lhe defensável?
Este novo espaço de expressão e informação que é a Internet precisa de uma política, no mesmo sentido em que há uma política para as telecomunicações, os satélites, a imprensa ou a televisão, com coisas que são permitidas e outras que não o são. Neste momento, a Internet não tem regras nem limites. É claro que se deve salvaguardar essa dimensão de liberdade e de emancipação, mas com a condição de se criar uma política. A grande batalha futura em relação à Internet não é obviamente acabar com ela, mas estabelecer regras e leis. Actualmente é um faroeste que só serve a tirania económica e financeira. Há uma mentira sempre repetida: a que diz que se aplicarmos uma lei à Internet é o fim da liberdade. Na verdade, é o inverso: é a lei que permite a liberdade, que protege o fraco, sem ela temos a lei do mais forte, e o mais forte é hoje o poder financeiro. Falamos da Internet como símbolo de liberdade, quando ela está ligada aos grandes poderes imperiais do século XXI: Google, Apple, Facebook, Amazon. É uma contradição que se pode resolver, desde que se aceite que o progresso técnico é óptimo, mas que agora é preciso introduzir regras sociais, políticas, culturais.

Tem insistido na distinção entre informação, que designa a mensagem, e comunicação, que implica uma relação e uma negociação. Pensa que a revolução global da informação teve tradução no plano da comunicação, que os povos e culturas do mundo se compreendem e toleram hoje mais do que no passado recente?
Uma das grandes fraquezas da humanidade é que adoramos matar-nos, detestar-nos e não nos compreendermos uns aos outros. Seria de esperar que todas essas redes de informação tivessem aumentado a tolerância, mas não é verdade: o racismo e o ódio ao outro estão de boa saúde. Basta olhar para a Europa e para o que se passa com os refugiados no Mediterrâneo. Temos uma aldeia global, mas que é apenas técnica, e essa tecnologia, ao tornar mais visíveis as diferenças culturais, não só não está a promover a tolerância, como se arrisca a provocar mais intolerância. É um paradoxo incrível, mas verdadeiro.

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