Descobrimentos e história nacionalista
1. A expressão “descobrimentos” comporta um evidente enviesamento (1) euro-cêntrico. Porque,
sendo descobridores, os portugueses (os europeus) foram também descobertos. O seu olhar sobre os
outros não deve obliterar (2) a forma como os outros nos olharam ou como eles se olhavam a si
mesmos. A compreensão histórica do momento que comemoramos não deve ser amputada de
qualquer das perspectivas deste confronto inter-cultural, até porque a acção dos portugueses - os seus
projectos, as suas estratégias, as suas avaliações, os seus resultados - teve também em conta tanto as
imagens por eles suscitadas nos outros como as imagens que os outros tinham de si mesmos. As
comemorações [dos descobrimentos] devem ser portanto a ocasião de restaurar esse complexo jogo
de imagens e de reverberações (3) provocado pela interação de várias culturas, por vezes radicalmente
diferentes.
2. Fomos nós [Portugueses], há cerca de 500 anos, que mais contribuímos para modelar aqui [em Portugal e na Europa] a imagem do Oriente. Comerciantes, missionários, viajantes, capitães, homens de letras e homens de ciência, oriundos de Portugal ou levados pelos portugueses, descreveram o Oriente. Como sempre acontece, essa descrição foi unilateral. Foi-o pelo enviesamento próprio de quem vem e vê de fora. Mas foi-o também pelo carácter auto-apologético, “imperial” e “de cruzada” que caracterizou, fundamentalmente, a expansão portuguesa. Não falamos muitas vezes disso. Ou falamos menos disso do que de um alegado natural ecumenismo lusitano. O silêncio até se compreende, em termos dos chamados “respeitos humanos”. Também não temos, nós os portugueses de hoje, que pedir desculpas a ninguém pelo que se foi passando, desde há quinhentos anos, nas relações entre nós e os outros. Mas temos hoje o dever – que se cumpre com actos e não com piedosas (4) , anacrónicas e inúteis desculpas – de tentar revelar o Oriente inabsorvível, incompreensível, indomável, radical e escandalosamente outro que os nossos cronistas não descreveram, que os nossos santos não catequizaram, que os nossos heróis não conquistaram, que os nossos Reis não governaram, que os nossos mercadores nunca compraram, que os nossos sábios não entenderam, que os nosso salões não albergaram e que, finalmente, os nossos antropólogos exotizaram (5). Mas no qual alguns portugueses por amores vários se perderam, pelo qual alguns outros traíram ou apostasiaram (6) e que talvez apenas alguns poucos dos nossos poetas tenham cantado ou, indivisíveis as palavras, tenham calado.
2. Fomos nós [Portugueses], há cerca de 500 anos, que mais contribuímos para modelar aqui [em Portugal e na Europa] a imagem do Oriente. Comerciantes, missionários, viajantes, capitães, homens de letras e homens de ciência, oriundos de Portugal ou levados pelos portugueses, descreveram o Oriente. Como sempre acontece, essa descrição foi unilateral. Foi-o pelo enviesamento próprio de quem vem e vê de fora. Mas foi-o também pelo carácter auto-apologético, “imperial” e “de cruzada” que caracterizou, fundamentalmente, a expansão portuguesa. Não falamos muitas vezes disso. Ou falamos menos disso do que de um alegado natural ecumenismo lusitano. O silêncio até se compreende, em termos dos chamados “respeitos humanos”. Também não temos, nós os portugueses de hoje, que pedir desculpas a ninguém pelo que se foi passando, desde há quinhentos anos, nas relações entre nós e os outros. Mas temos hoje o dever – que se cumpre com actos e não com piedosas (4) , anacrónicas e inúteis desculpas – de tentar revelar o Oriente inabsorvível, incompreensível, indomável, radical e escandalosamente outro que os nossos cronistas não descreveram, que os nossos santos não catequizaram, que os nossos heróis não conquistaram, que os nossos Reis não governaram, que os nossos mercadores nunca compraram, que os nossos sábios não entenderam, que os nosso salões não albergaram e que, finalmente, os nossos antropólogos exotizaram (5). Mas no qual alguns portugueses por amores vários se perderam, pelo qual alguns outros traíram ou apostasiaram (6) e que talvez apenas alguns poucos dos nossos poetas tenham cantado ou, indivisíveis as palavras, tenham calado.
António M. Hespanha, textos programáticos da Comissão dos Descobrimentos [1995]
1 Deformação de perspetiva.
2 Apagar, fazer esquecer.
3 Reflexos,
4 Aqui com o sentido de hipócritas, farisaicas.
5 Tornaram exóticos.
6 De «apostasia», isto é, ato consciente de abandono de uma religião.
Tradição oral sobre a chegada dos Portugueses à costa angolana,
proveniente da tribo Pende:
← “Um dia os homens brancos chegaram em navios com asas, que brilhavam como facas ao sol. Travaram duras batalhas com o N’gola e bombardearam-no. Conquistaram as suas salinas e o N’gola fugiu para o interior, para o rio Lucala. Alguns dos seus súbditos mais corajosos ficaram junto do mar e, quando os homens brancos vieram, trocaram ovos e galinhas por tecidos e contas. Os homens brancos vieram outra vez ainda. Trouxeram-nos milho e mandioca, facas e enxadas, amendoim e tabaco. Desde então até aos nossos dias, os Brancos não nos trouxeram nada senão guerras e misérias”
← “Um dia os homens brancos chegaram em navios com asas, que brilhavam como facas ao sol. Travaram duras batalhas com o N’gola e bombardearam-no. Conquistaram as suas salinas e o N’gola fugiu para o interior, para o rio Lucala. Alguns dos seus súbditos mais corajosos ficaram junto do mar e, quando os homens brancos vieram, trocaram ovos e galinhas por tecidos e contas. Os homens brancos vieram outra vez ainda. Trouxeram-nos milho e mandioca, facas e enxadas, amendoim e tabaco. Desde então até aos nossos dias, os Brancos não nos trouxeram nada senão guerras e misérias”
[cit. por Boxer, O Império Colonial Português, ed.
port. 1977, p. 125)
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