27 março 2020

Daniel Christian Wahl

PARA CRIAR AMBIENTE (LINK) PARA A LEITURA ;)

“Depois do coronavírus, seria um erro voltar ao sistema económico vigente”

O biólogo e consultor internacional Daniel Christian Wahl diz ter medo da atual pandemia de Covid-19, mas também esperança num futuro mais comunitário, assente numa economia regenerativa e colaborativa.
Depois da pandemia do novo coronavírus seria um erro manter em vigor um sistema económico que mata pessoas e o planeta como se nada tivesse acontecido, defende o biólogo e consultor internacional Daniel Christian Wahl.

Em entrevista à Renascença, o especialista em desenvolvimento sustentável e inovação transformadora defende que o capitalismo já não funcionava para a maioria antes da pandemia de Covid-19 -- o que o flagelo fez foi confirmar a fragilidade do comércio internacional e a necessidade de regressar a uma economia regenerativa e colaborativa, local, próxima das regiões e das pessoas.

O seu trabalho enquanto designer de sistemas de inspiração biológica e inovação transformadora assenta no conceito de culturas regenerativas. O que são?



São culturas que estão a tentar curar a coesão social e as condições do ecossistema local, do impacto destrutivo que causámos nos últimos 200 anos, e entregar as comunidades e os ecossistemas à próxima geração num estado melhor do que estavam quando os recebemos dos nossos pais.

São culturas saudáveis, resilientes e adaptáveis, prontas para responderem às mudanças, quer sejam climáticas ou políticas, para podermos viver no futuro de maneiras que realmente sirvam toda a humanidade e toda a vida.

Diria que esse é um sistema com capacidade de mudar as cidades e as profissões como as conhecemos?

Muda as cidades. Para que uma cidade seja regenerativa ou sustentável, ela precisa de se integrar profundamente na região local, ela deve reconectar-se aos agricultores locais, ao ecossistema local, à disponibilidade energética local. Isso iria aproximar de casa a produção e o consumo, iria criar economias biorregionais vibrantes de apoio à cidade e, desta forma, mudar também o trabalho.

Embora seja ótimo estarmos globalmente interconectados, neste momento, com o coronavírus, estamos a assistir à fragilidade do sistema. Se criarmos sistemas um pouco mais autossuficientes, em que o trabalho volta a focar-se no local, deixa de ser essencial trazer manteiga da Nova Zelândia quando pode ser feita ali ao lado.

Fala do coronavírus. Seria possível responder de forma mais eficaz a epidemias e pandemias como esta nesse sistema regenrativo?

Aquilo a que assistimos, como efeito secundário do coronavírus, é que a produção já parou há várias semanas na China e há atraso na entrega dos contentores importados da China. O sistema global de comércio está tão distante que, perante uma situação como este vírus, podemos ver como este sistema é frágil.

Com a regeneração biorregional, economias regionais em produção e consumo mais próximas de casa, obviamente criamos um sistema que é muito mais resiliente, porque não estamos tão dependentes das grandes importações de todo o lado. Isso não significa que vamos deixar de fazer trocas comerciais, apenas que vamos produzir o que podemos na região, para a região, mais próximo de casa, e negociaremos apenas aquilo que não temos na região.

Como define a economia regenerativa? É o oposto do capitalismo?

Redesenha completamente o capitalismo. Não sou radical ao ponto de defender que tudo no capitalismo é mau, mas a forma como o capitalismo está desenhado hoje é estruturalmente disfuncional e está a matar muitas pessoas e o planeta.

Penso que com esta crise do coronavírus estamos a ser confrontados com a necessidade de colaborarmos, a uma escala global e sem precedentes na história da Humanidade, e teremos de investir também a um nível inédito. Por isso, seria um erro simplesmente regressar ao sistema vigente. Não se trata de sobreviver ao vírus e refazer o sistema como o tínhamos, porque as mudanças climáticas e a emergência climática já nos estavam a dizer que o sistema não funcionava e os níveis quase obscenos de desigualdade no planeta, com tantas pessoas extremamente pobres e poucas muito ricas, também era insustentável. Podemos, então, aproveitar esta oportunidade que a crise do vírus nos está a dar para redesenhar os nossos sistemas económicos, de forma a que realmente sirvam as pessoas e o planeta.

Este sistema regenerativo é baseado na colaboração e solidariedade. Isto não o torna irrealista?

Acho que um dos grandes erros do sistema educacional é o facto de promovermos uma versão mal interpretada do Darwinismo, de que tudo gira à volta da competição por recursos escassos. A vida não funciona assim. Sou formado em Biologia e a vida é fundamentalmente mais simbiótica e colaborativa do que competitiva. Nesse sentido, não penso que seja irrealista. Acho que, naturalmente, a nossa espécie evolui como colaboradores, somos humanos apenas porque aprendemos a colaborar há muitos anos. Portanto, é mais realista criar um mundo que serve todos e vai da escassez competitiva à abundância colaborativa partilhada.

Temos de voltar atrás?

Eu prefiro dizer que temos de seguir em frente. Porque não se trata de um tipo de passado idealista, voltar às culturas regionais e à maneira indígena de fazer as coisas. Estas culturas regionais e povos indígenas podem ensinar-nos muito sobre como viver muitos anos e milénios, sem esgotar nem destruir o ecossistema local. Agora temos a oportunidade de misturar o melhor do passado e o melhor da inovação tecnológica e avançar para um mundo que sirva todos.

Como asseguramos que essa inovação tecnológica de que fala não prejudica o nosso futuro enquanto espécie?

É uma das maiores perguntas que temos de continuar a fazer. Acho que chegámos a um ponto em que muitas pessoas acreditam que estamos em desvantagem tecnológica, que estamos numa mudança tecnológica exponencial e que não podemos detê-la. Mas é como com o sistema económico: fomos nós que desenhámos a tecnologia e o sistema económico e podemos escolher redesenhá-los. O que significa que não precisamos de usar tudo o que é tecnologicamente possível, apenas temos de escolher de forma mais sábia que tecnologias realmente nos servem. Queremos criar um futuro regenerativo, onde a tecnologia serve a Humanidade e não o contrário.

Na base deste sistema regenrativo está a procura de uma resposta às alterações climáticas. Por que é que os planos e medidas que têm sido tomadas a nível global, em defesa do ambiente, não estão a ter o impacto desejado?

As alterações climáticas são uma ameaça difusa e há um atraso entre a execução e o momento em que começamos a ver os efeitos das nossas ações. Já é tarde, provavelmente. Começámos a senti-las agora. Levámos 40 a 50 anos para responder às mudanças climáticas, mas só demorámos dois meses para reagir ao coronavírus. Se usarmos a mesma urgência, o mesmo nível de disposição para colaborar a uma escala global numa resposta às mudanças climáticas, então podemos mudar rapidamente as coisas.

Também devemos estar cientes de que, tal como são trágicas as mortes por coronavírus neste momento, há muitas mais pessoas a morrer todos os anos por causa do nosso sistema económico estruturalmente disfuncional, por causa da desigualdade, por causa do colapso dos ecossistemas e devido às alterações climáticas. Só porque as alterações climáticas e o colapso do ecossistema são uma forma mais subtil e difusa de causar sofrimento e morte, não quer dizer que não estejam a acontecer.

A grande oportunidade que temos agora é usar este sentimento súbito, de que estamos todos no mesmo barco a lutar contra a Covid-19, que nos une além fronteiras, através dos sistemas de crenças e blocos políticos. Vamos usar isso de forma inteligente, para colaborar. Devemos às próximas gerações a construção de um futuro melhor.

Há cada vez mais pessoas preocupadas com estas questões, incluindo jovens. Estamos apenas perante uma moda?

Não. Acho que estes jovens estão conscientes de que o que está a acontecer afeta profundamente o futuro deles e até a possibilidade de os filhos terem um futuro. Acho que estamos num ponto de inflexão na história humana, veremos profundas transformações nos próximos dois a três anos que, durante muitos anos, não achámos que seriam possíveis. Não é apenas a crise do coronavírus, é o colapso económico que chega, na esteira da crise climática, e a forma como as cadeias de produção começam a quebrar. Somos convidados a ver como podemos ajudar as populações locais, de uma forma que realmente as sirva e cure a região local.

Por isso não acho que seja uma moda, esta preocupação chegou para ficar e em 2019 fiquei entusiasmado com as "Sextas para o Futuro" da Greta Thunberg, e também com a "Extinction Rebellion", eles finalmente conseguiram levar este problema para as ruas e disseram que chegava, precisamos de acordar e agir agora, porque esta é uma emergência planetária.

Com todas estas iniciativas pró-ambiente e com esta crise pandémica, vamos poder regressar à vida que tínhamos?

Penso que seria um erro tentar regressar ao que tínhamos como se nada tivesse acontecido, "business as usual". Funcionava para alguns mas, para a maioria, já não respondia às necessidades.

Agora temos de gastar grandes quantias de dinheiro, a um nível sem precedentes de colaboração global, usá-lo de forma inteligente e não pensar nisto apenas como uma resposta à pandemia viral. Se temos de rejeitar o sistema, vamos redesenhá-lo e reconstruí-lo de forma a que também lide com as mudanças climáticas, com o colapso do ecossistema em cascata, que reavalie o papel dos agricultores e revalorize as energias renováveis na região, que recupere os ecossistemas.

Estamos a entrar na década das Nações Unidas para a restauração dos ecossistemas e esta próxima década é fundamental para trazer de volta a floresta, curar a água, curar o solo e, basicamente, criar um mundo que pode responder a um futuro em mudança, no sentido em que é mais resiliente, saudável e adaptável.

Como avalia o trabalho que o Papa está a desenvolver nesta área?

Estou muito entusiasmado ao ver o Papa a tomar iniciativas como estas, o regresso ao significado da raiz da palavra religião - a união. Para além do que distingue os diferentes grupos religiosos, não importa se são cristãos, muçulmanos ou hindus, trata-se da união da humanidade no nosso destino comum e no cuidado por este planeta. O Laudato si' é um dos melhores documentos sobre este tema, temos que nos unir enquanto humanidade.

Sei que o Papa está muito interessado no tópico do desenvolvimento regenerativo e regeneração. Haverá uma conferência este ano, primeiro em Pizza e depois em Roma, com o envolvimento do Vaticano, sobre o desenvolvimento regenerativo e o papel que a igreja pode desempenhar.

O que acha desse papel. É importante o envolvimento da Igreja?

Absolutamente! Porque, às vezes, as camadas da sociedade mais resistentes à mudança, mais conservadoras, estão relacionadas com a igreja católica e ter alguém à frente da igreja católica que convida estes conservadores a falarem sobre a mudança transformadora é crítico, neste processo de transformação. É um papel importante.

Qual será o nosso papel enquanto cidadãos? O que podemos fazer individualmente?

Todos precisamos de nos unir de uma forma colaborativa, numa escala comunitária, local, para nos perguntarmos como queremos viver neste lugar. O que podemos fazer para tornar este bairro, esta vila, esta cidade ou esta biorregião um lugar melhor e mais saudável para as atuais e futuras gerações? Ousar voltar a imaginar um mundo melhor.

Tem receio de viajar?

Claro, tenho uma mãe que está prestes a completar 80 anos e, portanto, todos estamos preocupados. Mas também estou empolgado, porque chegámos a um ponto em que não podemos deixar de agir e isso é vital.

As alterações climáticas são um assassino lento e silencioso, estão a provocar o colapso do ecossistema. Podem não ter sido uma ameaça visível o suficiente para nos unirmos como espécie, mas agora isto é a nossa oportunidade para fazer essa mudança.

A vida é, antes de tudo, um processo planetário, é um processo colaborativo simbiótico, a vida cria condições favoráveis à vida. A partir do momento em que voltarmos a perceber que, como seres humanos, fazemos parte dessa comunidade, podemos criar condições favoráveis à vida.

Tenho receio do que os próximos tumultuosos anos e décadas vão trazer, mas tenho muita esperança pelo facto de que podemos fazê-lo. Vamos surpreender-nos por conseguirmos ser bons a colaborar e por nos podemos unir perante a crise e transformar a presença humana na Terra, de exploradores e degenerativos a curadores e regeneradores.

Como imagina a vida em 2050?

Espero que mais lenta, mais focada na qualidade, em conexões humanas profundas com culturas e ecossistemas locais, mas também com colaboração global e, esperançosamente, usaremos o melhor das tecnologias para manter contacto globalmente. Vamos talvez viajar menos e viver uma vida muito mais equilibrada, em comunidade. Vamos cultivar parte da nossa própria comida, ajudando a restaurar os ecossistemas locais, e também novamente culturalmente expressivos. Acho que podemos ter uma vida mais rica, divertida e significativa ao voltar ao local, à comunidade, à conexão com a vida. Tenho esperança!

Daniel Wahl esteve em Lisboa a convite da Culturgest, como orador convidado na Conferência “Economia e Culturas Regenerativas”, entretanto adiada. Já tem nova data, vai realizar-se online, dia 2 de abril, às 15h00, em streaming.

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