17 março 2020

Todas as coisas notáveis são tão difíceis como raras (Baruch Espinosa)

Imagine!




Dá que pensar

Imagine um mundo em que quase um terço das emissões de CO2 lançadas diariamente para a atmosfera desapareceu de um dia para o outro: os céus da China limpos da queima insaciável de combustíveis fósseis, a que se junta a redução acrescentada pela queda brutal das viagens de avião e da circulação dos imensos paquetes de passageiros, outrora um sinal de festa e hoje a nova praga das cidades costeiras. 

Imagine Veneza, Florença, Paris, São Petersburgo, Istambul desertas de multidões de chineses, coreanos, russos; museus onde se pode entrar e percorrer as salas: cafés onde se pode estar sentado; praças para onde se pode olhar. 

Imagine uma quantidade de gente com mais tempo para si, para a família, para os amigos, com menos pressa para tudo. 

Imagine gente a trabalhar a partir de casa, produzindo o mesmo e gerindo o seu próprio tempo de trabalho, gastando menos, poluindo menos, aliviando o trânsito. 

Imagine que de repente desapareceu a febre do consumismo supérfluo e que as pessoas se põem a pensar nas coisas que são verdadeiramente importantes. 

Imagine que um medo e uma apreensão global faz com que a necessidade de se andar informado faça as pessoas afastarem-se dos pântanos de intrigas e mentiras das redes sociais e regressem à informação de referência, onde está o serviço público de que necessitam. 

E imagine que, apesar do medo e da apreensão, porque somos seres humanos, somos desafiados a enfrentá-lo, a resistir-lhe e a combatê-lo, contra o egoísmo, o alarmismo e a irracionalidade alarve das massas, e a portarmo-nos como seres humanos. 

Isto, esta utopia, está a acontecer agora. Sob os nossos olhos e graças ao coronavírus. A forma como nos comportarmos vai ser tão importante, em termos de reflexão, como vai ser, em termos científicos, a forma como o vírus for vencido. Mas, até lá, esta pausa, esta suspensão do mundo tal como o conhecemos, já é um excelente tema de reflexão.

Claro que não é sequer pensável suster o mundo, como agora está forçadamente, de forma permanente. A mudança teria de ser feita de forma gradual, global e planeada. Mas também não é possível continuar a assentar um futuro sustentável numa fórmula que se traduz em mais, mais e sempre mais, de tudo: mais população, mais queima de resíduos fósseis, mais emissões poluentes, mais contaminação dos oceanos, mais desflorestação, mais incêndios, mais aviões nos céus, mais turismo de massas, mais agricultura intensiva, mais cidades megalómanas. 

Sabemos que temos de viver de outra maneira, mas não queremos ou não acreditamos que seja possível. E porque não o será? 



Miguel Sousa Tavares (no Expresso)

Sem comentários: