Estamos numa fase de transição que gera medos e tensões. Existem riscos e perigos, prisioneiros que estamos dos guardiões da carcaça do sistema socioeconómico que nos rege, que passam o tempo a dizer-nos que não é possível a mudança.
A esperança tem muito que se lhe diga. Para uns pode ser alienação. Supõe a
ausência de objeto, podendo por isso encerrar ilusão. Enquanto
para outros a
maior tragédia deste tempo é a falta dela.
Nos últimos meses moderei uma série de conversas, no âmbito da
Boca Bienal,
onde se refletiam impasses e cenários de mudança no contexto atual,
e onde
endereçava a mesma questão no final: o que lhe dá esperança?
“A vida”,
respondeu a artista Grada Kilomba.
“As pessoas e as relações intersubjetivas”, afirmou a ministra da Cultura Graça
Fonseca. “A capacidade humana de ver mais além em situações que
nos põem
em contacto com a fragilidade do que edificámos”, refletiu
Alexandre Farto (Vhils)
. “Acredito nos outros, em nós, na interdependência”, disse a
realizadora Salomé
Lamas, enquanto os artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre
Ferreira
expuseram que as crises provocam sempre rupturas, embora nem
sempre
existam alternativas. Lida-se com a realidade e é tudo. A ex-eurodeputada Ana Gomes evocou as “pessoas” e a sua
resiliência,
enquanto a coreografa brasileira Lia Rodrigues, que desenvolve
projetos
artísticos e pedagógicos nas favelas do Rio, nomeou aqueles com
quem trabalha.
"“Vejo-os de máscara, se ajudando e cuidando. Essas ações concretas são o que me dá
esperança, ver essa solidariedade em prática.” Na mesma linha, o ativista
Miguel Duarte, que participou em missões de resgate de refugiados no
Mediterrâneo, evocou essa experiência. “Vi gente perder a vida à minha frente,
mas também vi pessoas em situação precária a praticar a solidariedade. Vi o
horror, mas também a empatia, e acredito que a maioria, podendo escolher, age
com compaixão, apesar da minoria que provoca sofrimento.”
Já a cantora e ativista brasileira Linn da Quebrada foi taxativa:
“Não tenho esperança. A esperança nos mantém esperando, e
esperando e
esperando. Cansei de esperar. A esperança é mais uma dessas
ferramentas de
manutenção do sistema. Tenho raiva e indignação e elas são
produtivas. É isso
que me movimenta e me faz pensar no que precisa de ser destruído
nesse
mundo para que possamos projetar novos caminhos. Não acredito no
amor, nem
na esperança, porque são ferramentas do amo e é impossível
destruir o amo
com as suas próprias ferramentas. O amor e a esperança beneficiam
essas
mesmas pessoas que já estão no poder. Precisamos construir novos
afetos, sem
esperança.” É possível identificarmo-nos com todas estas respostas, apesar
dos sentidos
diversos. Havia alguém que dizia que somos conservadores, e
resistimos à
mudança, até nos apaixonarmos. Percebe-se a ideia. Quem não
preferia mudar
por amor, como enunciam algumas respostas? Que fosse o amor a
derrotar o que
corrói a democracia? Que fosse o amor-próprio e pelos outros,
por todos os seres
vivos e pelo planeta, a dar-nos força para as mudanças
individuais e coletivas?
Mas às vezes as transformações acontecem por inevitabilidade e é
tudo, como
enuncia João Pedro Vale. E noutras ocasiões, é necessário procurar
e lutar pelas
ruturas, como expõe Linn. Estamos há anos numa fase de transição que gera medos e tensões.
Existem
riscos e perigos, prisioneiros que estamos dos guardiões da
carcaça do sistema
socioeconómico que nos rege, que passam o tempo a dizer-nos que
não é
possível a mudança, ou dos que percebendo a complexidade dos
desafios,
adotam uma orientação derrotista. E agora, eis a pandemia, global,
ameaçadora,
vergando certezas antigas, exigindo a projeção de outros
horizontes.
Pode ser que soe a mera abstração, ou a récita de auto-ajuda,
junto de quem já
não tem força para acreditar, ou das classes intermédias que já só
se conseguem
arrastar, sobrevivendo num penoso processo de erosão. Mas desta vez não parece que seja possível ludibriar a realidade.
Somos confrontados com os limites do que edificámos. Há uma
necessidade
prática de construir algo mais próximo do bem comum. É preciso
transferir com
lucidez para a política as coisas que valem a pena, sem noções
ingénuas de um
mundo perfeito que nunca existirá, percebendo o que é passageiro e
irrelevante
como hipótese de superar o desencanto, porque as condições
adversas não são
naturais, nem eternas, ao contrário do que nos fazem acreditar.
A esperança é, afinal, a representação de um desejo de mudança, já
presente no
subconsciente individual ou coletivo. É a manifestação de uma
verdade que já
existe, mas ainda não ganhou expressão definida. É preciso, por
isso, discuti-la
e atribuir-lhe sentido.
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