12 julho 2020

O que Te dá esperança?

Estamos numa fase de transição que gera medos e tensões. Existem riscos e perigos, prisioneiros que estamos dos guardiões da carcaça do sistema socioeconómico que nos rege, que passam o tempo a dizer-nos que não é possível a mudança.

A esperança tem muito que se lhe diga. Para uns pode ser alienação. Supõe a 

ausência de objeto, podendo por isso encerrar ilusão. Enquanto 
para outros a 
maior tragédia deste tempo é a falta dela. 

Nos últimos meses moderei uma série de conversas, no âmbito da 
Boca Bienal, 
onde se refletiam impasses e cenários de mudança no contexto atual, 
e onde 
endereçava a mesma questão no final: o que lhe dá esperança? 
“A vida”, 
respondeu a artista Grada Kilomba. 
“As pessoas e as relações intersubjetivas”, afirmou a ministra da Cultura Graça 
Fonseca. “A capacidade humana de ver mais além em situações que 
nos põem 
em contacto com a fragilidade do que edificámos”, refletiu 
Alexandre Farto (Vhils)
. “Acredito nos outros, em nós, na interdependência”, disse a 
realizadora Salomé
 Lamas, enquanto os artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre 
Ferreira 
expuseram que as crises provocam sempre rupturas, embora nem 
sempre 
existam alternativas. Lida-se com a realidade e é tudo. 

A ex-eurodeputada Ana Gomes evocou as “pessoas” e a sua 
resiliência, 
enquanto a coreografa brasileira Lia Rodrigues, que desenvolve 
projetos 
artísticos e pedagógicos nas favelas do Rio, nomeou aqueles com 
quem trabalha.

"“Vejo-os de máscara, se ajudando e cuidando.  Essas ações concretas são o que me dá
 esperança, ver essa solidariedade em prática.” Na mesma linha, o ativista 
Miguel Duarte, que participou em missões de resgate de refugiados no 
Mediterrâneo, evocou essa experiência. “Vi gente perder a vida à minha frente, 
mas também vi pessoas em situação precária a praticar a solidariedade. Vi o 
horror, mas também a empatia, e acredito que a maioria, podendo escolher, age 
com compaixão, apesar da minoria que provoca sofrimento.” 
Já a cantora e ativista brasileira Linn da Quebrada foi taxativa: 
“Não tenho esperança. A esperança nos mantém esperando, e 
esperando e 
esperando. Cansei de esperar. A esperança é mais uma dessas 
ferramentas de 
manutenção do sistema. Tenho raiva e indignação e elas são 
produtivas. É isso 
que me movimenta e me faz pensar no que precisa de ser destruído 
nesse 
mundo para que possamos projetar novos caminhos. Não acredito no 
amor, nem
 na esperança, porque são ferramentas do amo e é impossível 
destruir o amo 
com as suas próprias ferramentas. O amor e a esperança beneficiam 
essas 
mesmas pessoas que já estão no poder. Precisamos construir novos 
afetos, sem
 esperança.” 

É possível identificarmo-nos com todas estas respostas, apesar 
dos sentidos 
diversos. Havia alguém que dizia que somos conservadores, e 
resistimos à 
mudança, até nos apaixonarmos. Percebe-se a ideia. Quem não 
preferia mudar 
por amor, como enunciam algumas respostas? Que fosse o amor a 
derrotar o que
 corrói a democracia? Que fosse o amor-próprio e pelos outros, 
por todos os seres
 vivos e pelo planeta, a dar-nos força para as mudanças 
individuais e coletivas? 
Mas às vezes as transformações acontecem por inevitabilidade e é 
tudo, como 
enuncia João Pedro Vale. E noutras ocasiões, é necessário procurar
 e lutar pelas 
ruturas, como expõe Linn. 

Estamos há anos numa fase de transição que gera medos e tensões. 
Existem 
riscos e perigos, prisioneiros que estamos dos guardiões da 
carcaça do sistema 
socioeconómico que nos rege, que passam o tempo a dizer-nos que 
não é 
possível a mudança, ou dos que percebendo a complexidade dos 
desafios, 
adotam uma orientação derrotista. E agora, eis a pandemia, global, 
ameaçadora, 
vergando certezas antigas, exigindo a projeção de outros 
horizontes. 
Pode ser que soe a mera abstração, ou a récita de auto-ajuda, 
junto de quem já 
não tem força para acreditar, ou das classes intermédias que já só
 se conseguem 
arrastar, sobrevivendo num penoso processo de erosão. 

Mas desta vez não parece que seja possível ludibriar a realidade. 
Somos confrontados com os limites do que edificámos. Há uma 
necessidade 
prática de construir algo mais próximo do bem comum. É preciso 
transferir com 
lucidez para a política as coisas que valem a pena, sem noções 
ingénuas de um 
mundo perfeito que nunca existirá, percebendo o que é passageiro e
 irrelevante 
como hipótese de superar o desencanto, porque as condições 
adversas não são
 naturais, nem eternas, ao contrário do que nos fazem acreditar. 
A esperança é, afinal, a representação de um desejo de mudança, já 
presente no
 subconsciente individual ou coletivo. É a manifestação de uma 
verdade que já 
existe, mas ainda não ganhou expressão definida. É preciso, por 
isso, discuti-la 
e atribuir-lhe sentido.  

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