03 agosto 2020

A propósito de uma estátua em Belmonte e de José Afonso

Segundo a noticia da imprensa o Município de Belmonte homenageia hoje Zeca Afonso com a realização de várias actividades culturais  e a inauguração de uma “estátua em tamanho real”.

Sem ter sequer acesso a uma foto da referida estátua confesso que se torna para mim misterioso quando para além do anúncio da estátua se adjetiva, julgo eu para a valorizar, que é em “tamanho real”

Calculo que que se queira dizer que entre a figura em carne e osso que conhecemos e aquela estátua a semelhança é tão grande que por momentos poderemos dizer “é mesmo ele” ou no pico do reconhecimento “até parece que está vivo”. A estátua será um sucesso (tal como a de Fernando Pessoa no Chiado) se qualquer transeunte se puder abraçar a ela, tirar uma selfie, dar um beijo, um abraço, ou, em revanche fascistóide ou gratuita, projetar uma escarradela ou uma pincelada noturna. A tudo isso a estátua se manterá alheia, ausente e impassível o que, concordemos, é o primeiro sinal de grande dissemelhança com a figura real que quer representar.

Todos sabemos que esse ideal obsessivo de imitação realista pode ser realizado com a maior precisão e rigor. Tiradas as medidas ao referente de algum retrato mesmo que amarelecido, qualquer impressora 3D da indústria 4.0, resolve em poucos segundos a produção robotizada do boneco na escala “real” (uma oportunidade de negócio, dirão hoje). Mas mesmo nesta situação o risco é imenso, tal como contou um dia Umberto Eco, a propósito de um artista também obsecado pelo dito rigor e precisão, que desenhou um cão de lado e não o reconheceu no dia seguinte, quando este lhe apareceu de frente.

Fazer estátuas a poetas convenhamos que não é para todos. Designadamente tendo como objeto José Afonso que era um poeta poliédrico irredutível a um e qualquer angulo de perspetiva. Fazer uma estátua terá que ser um acto de equivalência artística, uma metáfora física que capte a essência e a verdade do poeta. Exercício ainda mais elevado quando é da sua obra que se pode retirar com maior profundidade a dimensão humana, fraterna e solidária da sua existência.

A poesia de Sophia contém muitos poemas que remetem para estátuas gregas, obras de arte, às quais ela retira detalhadamente a alma e o espírito poético que as incorpora. Muito gostaria que todos os atos de homenagem a José Afonso tivessem essa sorte e a dignidade que o poeta merece. Reconheçamos que não tem tido sorte.

Esperemos que não se confirme aquilo que alguém diz ter ouvido ao poeta em vernáculo puro: “as estátuas só servem para os pombos lhe cagarem em cima”.

 



“Confirma-se o mau gosto! Pombinhos podem pousar!”

1 comentário:

Clara Belo disse...

Que coisa tão horrorosa, tão injusta e sensaborona. Abraço Zé Maria Clara