29 maio 2022

A história” e “O Benfica a jogar em casa”

Cara leitora, caro leitor 

“A história”, “O Benfica”, “O Benfica a jogar em casa”, “aqueles dias”. A educação conservadora não tolerava o uso público – sem ser no consultório do médico – da palavra “menstruação”. Dizer “período” era um avanço, mas habitualmente éramos educadas a optar por subterfúgios de linguagem. E, acima de tudo, a nunca falar com rapazes sobre isso.

Esta semana, uma amiga minha, ao escrever sobre uma das questões do momento – a licença para as mulheres que sofrem de dores menstruais incapacitantes – escreveu a palavra “fluxo”. Eu disse-lhe que, tendo em conta a minha educação conservadora, era incapaz de escrever a palavra “fluxo”. Bem, estou aqui e agora a escrevê-la, na fé de que a escrita também resolva traumas e preconceitos. 

Nunca se falava com homens destes assuntos a não ser com os maridos. Isto foi-me logo ensinado em criança, quando eu estava a anos-luz de vir a ter um “marido”. A primeira menstruação apanha as miúdas aos dez, 11 anos. E tudo era, naquela época, uma vergonha: pedir dispensa das aulas de ginástica, ir à praia meia vestida (não custa tanto nas praias da zona Oeste, com aquele vento amigável), o medo de uma mancha visível na roupa… Depois, não se podia lavar a cabeça e havia quem achasse que os bolos, se feitos por uma mulher com o período menstrual, “não subiam”. Isto era o Portugal dos anos 70 e 80. E por muito que eu queira parecer moderninha, cara leitora, caro leitor, é esta a pátria que me fez. Assumo que não gosto de falar deste assunto, a menos que seja uma conversa num grupo de amigas íntimas. Amigas. Nunca amigos. 

Percebi que as coisas tinham mudado quando o meu filho, aí pelos 15 anos, estava a sair de casa com um grupo de colegas. Iam ter com umas amigas que estavam cá em baixo. E subitamente, com a maior das naturalidades, o meu filho pergunta-me se eu tenho um penso higiénico para uma amiga. Alguns leitores vão chamar-me horrorosamente conservadora, eu sei, mas fiquei quase paralisada. Eu não estava habituada a falar com o meu rapaz de menstruação e pensos higiénicos. (Tenho sempre a desculpa de ser minhota e os minhotos têm em si o extremo do conservadorismo e o extremo do não-conservadorismo – isto fica para outra conversa). 

Lá fui buscar o penso higiénico e, com os anos 70 e 80 na cabeça, tentei disfarçá-lo numa bolsinha daquelas de maquilhagem, para que ninguém ficasse a saber, que ia ali aquela “coisa vergonhosa” que faz parte do quotidiano das mulheres dos dez anos até à menopausa. Enquanto eu tentava esconder o objecto, o meu filho tirou-mo da mão e disse-me: “Não é preciso isso para nada!”. Foi uma daquelas alturas em que percebi que a educação conservadora da minha geração, malgré-moi, não tinha felizmente passado à descendência.

E, no entanto, a proposta do PAN para a criação de uma licença menstrual de três dias para as mulheres que sofrem com dores incapacitantes foi chumbada novamente no Parlamento. A Espanha consegue avançar, a minha geração, hoje no poder, pelos vistos foi educada como eu e não consegue sair do sítio: acha que estes assuntos das dores menstruais incapacitantes devem ser discutidas só com “o marido” ou as amigas íntimas. No passado, chegou a existir uma espécie de “licença menstrual” sem esse nome, mas acabou. É evidente que uma grande parte das mulheres não sofre nada – ou quase nada – durante o período. Mas muitas passam muito mal, com dores de cabeça e de barriga intensas. Já vi mulheres a trabalharem em estado de quase se atirarem ao chão, porque precisavam de estar na cama. É claro que se os homens passassem por isto o problema certamente estaria resolvido. 

Ouçam o podcast Poder Público, onde se fala da menstruação enquanto questão política. Esta sexta-feira, entrevistei no programa Interesse Público a líder do PAN, Inês Sousa Real, que apresentou a proposta que foi recusada.

Tenha um ótimo mês de Junho. Eu vou fazer agora as minhas “férias grandes”, mas estarei de volta em Julho (espero que venha a ter temperaturas mais amenas que este Maio absurdo). Até lá!

Ana Sá Lopes

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