Quando, em 2008, foi «empurrado» pelo seu agente literário em Nova Iorque para escrever uma biografia de Fernando Pessoa, Richard Zenith pensou que, com todo o trabalho de leitura, tradução, edição e estudo que já levava na bagagem, demoraria talvez dois ou três anos a entregar o livro. Acabou por demorar treze: a obra foi publicada em inglês no final de junho do ano passado e a tradução portuguesa, Pessoa. Uma biografia (ed. Quetzal) chegou quase um ano depois. É um volume imponente, de 1200 páginas, com todos os aspetos da vida e personalidade de Pessoa tratados de forma clara e envolvente.
Nascido em Washington D.C. em 1956, Zenith tomou contacto com a língua portuguesa ainda na Universidade de Virgínia. Viveu três anos no Brasil e em 1987 veio para Portugal com uma bolsa Guggenheim para traduzir cantigas medievais galaico-portuguesas. Foi por cá que descobriu o Livro do Desassossego. Como não havia tradução para o inglês, viu aí «uma oportunidade» e pôs mãos à obra.
O seu trabalho de estudo, edição e tradução da obra do poeta lisboeta valeu-lhe em 2012 o Prémio Pessoa. Em conversa com o Nascer do SOL, Richard Zenith não hesita em dizer que Pessoa foi um génio que «viveu muito em função da sua obra». Ainda assim, procurou com esta biografia provar que «Pessoa teve uma vida, uma vida como os outros». Ou quase.
É no Brasil que toma contacto com a língua portuguesa?
Praticamente. Tinha estudado um semestre de Português na Universidade de Virgínia, mas era o nível mais básico. Cheguei ao Brasil com pouquíssimo português, mas já sabia espanhol. E mesmo antes de chegar ao Brasil li um ou outro romance em português, mas substancialmente foi no Brasil que aprendi.
Foi para o Brasil à procura de um certo exotismo? De uma vida mais descontraída?
Durante a licenciatura participei num programa de intercâmbio, vivi meio ano na Colômbia, e gostei muito. Tinha uma paixão por línguas e isso despertou-me também uma paixão por todo o continente da América do Sul. Além disso, várias pessoas tinham-me dito: ’Tens de ir ao Brasil. O Brasil é fascinante’. Ouvia a música e tinha uma enorme curiosidade em relação à cultura brasileira. Depois estava no lugar certo no momento certo, porque os governadores da Virgínia e de Santa Catarina [Florianópolis] tinham assinado um acordo. Um virginiano iria como leitor de inglês para dar aulas na Universidade Federal de Santa Catarina, e vice-versa. Eu não sabia quase nada de português, mas esse quase nada era muito mais do que quase qualquer outra pessoa na minha universidade. Não tinha assim outro projeto em mente, tinha só a ideia romântica de que queria ir ao Brasil, e surgiu essa oportunidade.
E é no Brasil que lê pela primeira vez Fernando Pessoa?
Nos Estados Unidos tive uma amiga que namorava com um português que lhe passou umas fotocópias de ‘Tabacaria’ e dos poemas de Alberto Caeiro, e tanto ela como eu ficámos fascinados. Já existiam algumas traduções em inglês, mas Pessoa não era nada conhecido.
E depois vem para Portugal com uma bolsa Guggenheim para traduzir as cantigas de amor e de amigo. De onde surgiu essa ideia?
Comecei por traduzir poetas brasileiros, como Ferreira Gullar ou João Cabral de Melo Neto. De volta aos Estados Unidos, queria aprender mais sobre a poesia em língua portuguesa, e um dia estava na biblioteca da Universidade de Georgetown, em Washington, e vi uns tomos que diziam ‘Cancioneiro’. Não sabia nada das cantigas medievais e achei fascinante. Depois investiguei, vi que não havia quase traduções. Então montei um projeto, pedi uma bolsa e consegui. É a poesia mais difícil que traduzi até hoje.
Imagino que tenha sido a descoberta do Livro do Desassossego que o ‘desassossegou’ e o levou a querer estudar mais a fundo o Pessoa.
Sim.
Foi uma espécie de revelação?
A palavra revelação talvez seja demasiado forte. Quando estava no Brasil já conhecia a poesia de Pessoa, de que gostava muito, e só aqui em Portugal descobri o Livro do Desassossego. Achei muito empolgante e, bom, era um jovem tradutor, vi que não havia ainda uma tradução para o inglês, então vi uma oportunidade e meti-me nisso.
Na altura o Livro do Desassossego ainda não era considerado a grande obra de Pessoa, como mais tarde acabou por tornar-se, pois não?
A primeira edição da Ática tem muitos méritos até por ser a pioneira. Mas o início são listas e projetos, a própria organização não é muito convidativa. De qualquer modo, impressionou-me muito logo no início, e depois com o passar dos anos foi sendo cada vez mais uma revelação. Um dos grandes pontos do Livro do Desassossego é que é uma obra sem fim. Há tantos níveis de leitura que mesmo à terceira, quarta, quinta vez vamos sempre descobrindo mais.
Na apresentação da sua biografia disse: «Não temos de ser freudianos para perceber que a infância forma quem somos». Um dos acontecimentos mais importantes da infância de Fernando Pessoa será a morte do pai, quando ele tinha cinco anos. Apesar de ser muito pequeno, ele tinha memórias que lhe permitissem idealizar a figura do pai?
Provavelmente poucas. Mas algumas. No último ano de vida, o pai está muito doente e o Fernando, pequenino, vai com ele para Caneças. Pensavam que o ar do campo e as águas de Caneças eram bons para a tuberculose. Tinha quatro anos e ficou lá um mês, talvez um pouco mais. Com a mãe rodeada desses problemas todos, e ao mesmo tempo havia a avó com essa loucura que tinha momentos muito violentos, Pessoa devia ter uma memória um bocado negra desse ano.
Seguindo a linha freudiana, poderíamos questionar se na origem da possível homossexualidade dele estaria o facto de desde muito pequeno não ter pai…
A sexualidade de Pessoa…
É debatível?
Sabemos, pelos seus próprios apontamentos, que quase certamente morreu virgem. Agora, definir a sexualidade e os impulsos que tinha é complicado. E a relação disso com a morte do pai, bom… Isso é um grande salto que não pretendo fazer. Acho muito discutível relacionar a sexualidade com factos da infância.
A mãe acaba por casar em segundas núpcias com João Miguel Rosa, que é nomeado cônsul em Durban. Qual era o estatuto social do cônsul? A família vivia bem? Isso tem influência na educação de Fernando Pessoa?
O João Miguel Rosa tinha sido capitão da Marinha e depois capitão do porto de Moçambique, na cidade que então se chamava Lourenço Marques, durante um ano. E pouco antes de se casar com a mãe de Pessoa foi nomeado cônsul em Durban. Tinha um bom salário e era um bom padrasto, disposto a apoiar Fernando e a tratá-lo como se fosse filho. Agora, é natural que para Fernando, que antes tinha toda a afeição da mãe para ele, não era fácil dividir a mãe com este homem. Aliás, não seria fácil para nenhuma criança. Mas Fernando e o padrasto tiveram uma boa relação.
Logo em Durban começa a dar sinais de uma inteligência acima da média. E ganha um prémio de bom aluno.
Sim, era um aluno aplicadíssimo, sempre o melhor da turma, estudava muito e gostava da escola. Chegou a Durban sem falar inglês e rapidamente se tornou o melhor aluno a inglês.
Há livros que sejam muito importantes para a sua formação nesta altura?
Em primeiro lugar, a literatura inglesa, porque era o que estudava em Durban. Poesia dos românticos ingleses – Byron, Shelley, Wordsworth, Keats, e por aí fora. Gostava muito de Shakespeare e Milton, mas também lia americanos, como Edgar Allan Poe. Mas ao mesmo tempo lia por conta própria literatura portuguesa, então tinha alguns livros de um ou outro poeta, ou antologias de literatura portuguesa. Foi sempre exercitando o português, não só falando com a família, mas também nas leituras.
Há uma frase dele da juventude em que diz mais ou menos o seguinte: ‘Tenho sonhos que, a conseguir revelá-los e torná-los vivos, acrescentariam uma nova luz às estrelas, uma nova beleza ao mundo e um maior amor ao coração dos homens’. Traduz um certo romantismo típico da juventude. Com o tempo foi-se tornando mais desencantado, mais cínico?
Essa frase que citou, se me lembro bem, aparece num conto.
Então não traduz necessariamente o que ele pensa?
Não é necessariamente Pessoa. Mas também não importa muito se é ou não é, porque Pessoa sempre adotou vários pontos de vista e já quando era adolescente fazia isso. É verdade que havia um lado romântico – no sentido de heroísmo, de idealismo, de vontade de melhorar o mundo. Tinha isso mais forte quando era mais novo, com certeza. Mas mesmo aí já tinha dúvidas sobre a viabilidade desse idealismo e dessas aspirações. E depois vai crescendo um certo ceticismo. Mas em Pessoa o ceticismo coexiste com o idealismo, tanto que mais tarde vêm coisas como o Quinto Império. O que é isso, se não idealista? É impossível de realizar. Mas Pessoa dedicou muito dos seus pensamentos e sonhos a esse ideal do Quinto Império. Portanto ele nunca perde o idealismo.
Eduardo Lourenço colocou em epígrafe do livro Pessoa Revisitado uma frase de Gaston Bachelard: ‘O génio é uma classe formada por um só indivíduo’. Em que medida o génio de Fernando Pessoa contribuiu para acentuar a sensação de isolamento?
A noção de génio é bastante discutida hoje. Muitos dizem que não existem génios, que os alegados génios são produtos do tempo e lugar, e o mais importante são as grandes correntes, sociais, históricas, etc. Pessoalmente, acho que há génios nos vários campos. Nas artes, na literatura, eu acredito que há realmente génios.
E Fernando Pessoa é um deles?
O caso de Pessoa é curioso porque há vários apontamentos em que lamenta o facto de o génio estar condenado ao isolamento, condenado a não ser entendido pelos outros, condenado a ficar afastado do resto. E, além disso, o génio comporta obrigações, tem de se fazer uso dele. Mas para mim o mais importante é que o génio era procurado por Fernando Pessoa. Não era só ele perceber que era um génio, era ele querer ser um génio.
Esforçava-se por isso?
Exato. E julgo que esse esforço foi um dos factores que o levaram a ser um génio realmente. Quando lemos as coisas que escreveu em criança, são interessantes, mas não são, para mim, indicadores necessariamente de génio. Isso seria mais tarde. Quanto à solidão que o génio implicava, há apontamentos em que ele diz que era uma criança solitária e estava muito bem assim. Gostava da sua própria companhia. É verdade que mais tarde, nos anos 20, anos 30, sente-se que a solidão começa a pesar mais, há um elemento um pouco triste nessa solidão. Mas mesmo então ele não tem, acho eu, remorsos da vida que teve, de ter ficado sempre…
Celibatário?
Celibatário e solitário. Era o que ele conhecia desde pequeno e o que lhe convinha. Teve a vida que quis ter, penso eu.
E abdicou de ter uma vida interessante para construir a sua obra?
Essa leitura já é antiga, a insinuação de que Pessoa abdicou da vida em prol da sua obra. Sim, parece-me que há verdade nisso. O Jorge de Sena tem um ensaio famoso, ‘Fernando Pessoa: o homem que nunca foi’, que exprime essa ideia. Com esta biografia, sem negar que Pessoa viveu muito em função da sua obra, quis provar que mesmo assim teve uma vida, uma vida como os outros. Quis muito retratar esse lado humano. Não vejo exatamente que tenha sacrificado a vida, até porque não lhe interessavam viagens reais, geográficas, queria viagens imaginárias. Tentei sobretudo retratar todas essas viagens na literatura, no pensamento, esses voos espirituais, e também sentimentais, que fez através da sua obra.
Em relação a consumar a sexualidade, ele também diz que não é uma coisa que lhe interesse muito. A vida dele era sobretudo interior, mental?
Sim, Pessoa disse que não lhe interessava muito o sexo e a sexualidade. Eu acho que ele devia ter uma libido pouco acentuada. Mas uma coisa que vejo na obra e nos apontamentos é que a sexualidade, mesmo assim, está muito presente. Pessoas com mais idade vão perdendo a libido, mas não perdem o interesse. Vão olhando… é outra coisa. Acho que Pessoa, de certo modo, era precocemente velho. Não tinha muito interesse, fisicamente, em consumar desejos sexuais. Mas nos seus poemas, textos em prosa, apontamentos, na sua busca espiritual, em toda a criação desse clube de heterónimos, também há qualquer coisa de uma transformação dessa energia sexual.
É ponto assente que Pessoa é múltiplo. Mesmo assim causa alguma perplexidade como pode o racionalismo dele, muito analítico, conviver tão bem com as superstições, as cartas astrológicas, as sessões de espiritismo, e de uma forma geral a sua inclinação para o oculto.
Pessoa tinha essa capacidade – e não precisava de heterónimos para isso – de ao mesmo tempo adotar várias maneiras de encarar e de processar a realidade. Gastava imensas horas na astrologia, a fazer todas aquelas cartas astrológicas, a ler livros sobre essa matéria. Para algumas pessoas é óbvio que Pessoa acreditava naquilo. Sim, acreditava. Mas uma outra parte dele não acreditava nada, punha sempre tudo em causa, havia sempre uma dúvida que persistia. E quem diz a astrologia diz os interesses pelo esoterismo, as suas teorias de sebastianismo… E os heterónimos.
Muitas pessoas veem esse interesse pela astrologia como uma perda de tempo. Mas se calhar não podemos ter uma coisa sem a outra.
Outra zona deste mundo de Pessoa difícil de entender é a ‘pancada’ que ele tinha pelo mundo do comércio. Ele queria fazer sucesso como homem de negócios. Gastou muito tempo a tentar promover negócios em que agia como intermediário, por exemplo entre minas portuguesas e investidores ingleses. Fez isso durante anos. Nunca ganhou um tostão. Não tinha capacidade para os negócios, mas insistia nisso. Perda de tempo? Aparentemente. Mas ele precisava daquilo, fazia parte da sua ecologia, da sua economia mental e espiritual, como também a astrologia e outras coisas que o ocupavam.
Viu essas cartas astrológicas?
Claro.
Um leigo consegue perceber alguma coisa? Ou é como alguém que não sabe ler música e olha para uma pauta e só vê linhas, pontos e sinais incompreensíveis?
É um pouco as duas coisas. Umas vezes ele deixava apontamentos com interpretações, outras vezes não. Depois há astrólogos, como Paulo Cardoso, que se dedicam a interpretar o significado dessas cartas.
Falou da ambição dele de ser homem de negócios. Não se satisfazia com aquele trabalho mais burocrático de escritório, de traduzir e escrever cartas?
Ele gostava muito do ambiente dos escritórios de início do século XX na Baixa lisboeta, escritórios com muita madeira, máquinas de escrever, todo o mundo bem vestido, de modo conservador. É curioso, mas ele sentia-se em casa naquele ambiente. O seu ganha-pão era escrever cartas em inglês e francês para empresas de importação/ exportação. Mas depois tentou criar negócios, firmas, e de facto houve uma ou outra que realmente existiu. Ele queria ganhar dinheiro, fazer sucesso. Mas era apenas um jogo, porque no fundo não lhe interessava o dinheiro, ele só queria o dinheiro de que precisava para viver. É um dos vários mistérios de Pessoa, porque é que ele estava tão fascinado e insistia nisso, nesse jogo de tentar ganhar dinheiro em negócios.
Sendo ele um excelente funcionário, com grande capacidade, muito inteligente, e não tendo grandes gastos, como é que andava sempre meio falido, a dever e a precisar de dinheiro?
Ele ganhava ‘x’ por carta. Se tivesse aceitado um trabalho a tempo parcial, por exemplo, podia ganhar mais dinheiro e estar mais folgado. Mas trabalhava sempre para meia dúzia de firmas, ia de firma em firma, escrevia uma carta aqui, uma carta ali, o que não lhe dava muito dinheiro. Ganhava apenas o suficiente para viver e estava constantemente endividado, a pedir dinheiro emprestado a familiares, a amigos, que muitas vezes lhe perdoavam as dívidas.
E lhe pagavam os almoços…
Exato.
A família achava que ele era só esse burocrata?
Não, a família sabia que ele era um poeta…
Mas se calhar via essa faceta quase como um devaneio, não?
Um pouco. Até porque naquele tempo havia muitos homens de negócios ou donas de casa que também escreviam poemas nos tempos livres. A mãe de Pessoa escrevia poesia – não muito boa, mas escrevia – e outros parentes de Pessoa, homens e mulheres que também escreviam alguma poesia.
E ele podia ser mais um?
Todo o mundo sabia que Pessoa estava muito mais dedicado a isso, e sabiam que ele tinha um talento que os outros não tinham. Mas a verdade é que não reconheciam o génio, não estavam conscientes de quão bom ele era como poeta. Aliás, não era só a família. Os próprios literatos, as pessoas da intelectualidade portuguesa. Alguns, poucos, tinham noção de que era um grande poeta, outros achavam que era um bom poeta, mas não tinham noção do seu verdadeiro valor.
A Mensagem não mudou isso?
Com a Mensagem, também pelo facto de ter ganho o prémio [Antero de Quental, do Secretariado Nacional de Informação], Pessoa tornou-se mais reconhecido como um poeta de valor também pelos seus familiares. Ao mesmo tempo, muitos publicam livros, um livro publicado não é necessariamente sinal de grandeza. E outra coisa: a Mensagem foi reconhecida por alguns críticos como poesia realmente muito boa, mas também havia outros críticos que achavam que era demasiado hermético. Eu adoro a Mensagem, acho que é grande poesia, mas há poemas que para um ‘leigo’, digamos assim, não são tão fáceis de apreciar.
Até que ponto podia agradar a Pessoa a ideia de ser um poeta pouco publicado, ‘subestimado’, quase secreto? Alguém com muita obra na gaveta e pensar: ‘Vai chegar o dia em que vou conhecer a glória’.
Há um trecho do Livro do Desassossego em que Bernardo Soares, e penso que Pessoa por trás de Bernardo Soares, se contenta com o facto de ter coisas escritas que podem trazer-lhe fama no futuro. E diz Bernardo Soares: ‘Bom, alguém pode dizer ‘se essa fama é futura, qual é o valor para si agora?’’. E a resposta: ‘Mas o gozo é agora. Agora tenho esse gozo de imaginar a minha fama futura’. E penso que isso valia para o Fernando Pessoa. Ele tinha gozo em imaginar a sua fama futura. Mas em toda essa questão do reconhecimento e da celebridade Pessoa estava muito dividido. Dizia que não a queria agora nesta vida, que apostava tudo na posteridade, mas percebe-se que às vezes fica desapontado por não ter mais reconhecimento. Ele deixou a poesia de Alberto Caeiro escondida durante muitos anos – surge em 1914 e apenas em 1925, 11 anos depois, é que publica pela primeira vez algum poema de Alberto Caeiro, na revista Athena. Tudo de uma vez, em dois números dessa revista. Mas depois não houve reação. Claro que Pessoa ficou desapontado. E com dúvidas. ‘Será que realmente são assim tão bons?’.
Caeiro é visto como o poeta bucólico, um poeta do campo e das sensações, enquanto Pessoa é quase um fanático da razão e ao mesmo tempo um urbano inveterado. Caeiro é quase um anti-Pessoa?
Sim, acho que é o heterónimo mais antitético de Pessoa. Há esses ambientes diferentes, o Caeiro é rural e Pessoa é urbano. Mas acho que tem mais a ver com a questão sossego/ desassossego. Leyla Perrone-Moisés, uma investigadora brasileira, escreveu no seu livro Fernando Pessoa: Aquém do eu, além do outro que o único momento de sossego de Pessoa era Alberto Caeiro, e acho que sim. Pessoa é sempre o desassossegado, e não quero com isso dizer desassossego no sentido de ansiedade ou de preocupação, mas no sentido de não ficar num lugar só, não ficar quieto, estar sempre em movimento, a mudar de uma coisa para a outra.
Ontem assisti a uma palestra de um arquiteto muito conhecido, e alguém lhe perguntou como se põe alegria na arquitetura. E ele respondeu: ‘Com janelas, muita luz natural’. E eu lembrei-me de Pessoa fechado num quarto interior, sem janelas. Qual é o papel da tristeza, eu diria quase voluntária, na maneira como Pessoa conduz a sua vida?
Pessoa, penso eu, não se preocupava com a felicidade, não era uma ambição sua. Era uma pessoa espirituosa, com um bom sentido de humor, que se ria com os amigos, as crianças da família adoravam-no porque era muito brincalhão. Mas de facto levava consigo sempre uma insatisfação, um certo sentimento de não se enquadrar. Também não queria enquadrar-se. E é curioso isso da janela, porque a janela surge muito na obra de Pessoa. Alberto Caeiro ao lado da janela, como a Maria José, o seu único heterónimo feminino, ou a ‘Tabacaria’, em que o narrador Álvaro de Campos está sentado com os seus pensamentos muito desesperados mas depois vai até à janela. Lá fora há alegria, vida, mas depois volta à poltrona e fica sentado com os seus pensamentos algo lúgubres. A ideia da janela e da felicidade lá fora está muito presente na obra de Pessoa. Mas na sua vida pessoal não se importa com a alegria. Não porque fosse necessariamente triste, mas porque convertia a sua experiência – emoções, sensações provocadas por tudo à sua volta – em versos e passagens de prosa.
Em relação à bebida, há uma vez em que ele escreve: «Se alguém me disser que precisa de beber para escrever, então eu digo-lhe: ‘Beba’».
Eu cito isso na biografia.
Ele bebia para trabalhar, para se anestesiar ou para se alhear da realidade?
No Livro do Desassossego, que citou, ele sustenta que a bebida é para escrever.
Um estímulo?
Sim. Agora, vai bebendo mais nos últimos anos. E não é por estar a escrever mais… [risos] Vejo a bebida como um remédio para Pessoa, uma forma de anestesia, talvez, ou de provocar uma alteração da consciência. E um companheiro. Mas ele nunca ficava bêbedo. Sim, bebia muito, mas na minha pesquisa não encontrei nenhuma referência a ele ficar bêbedo.
Já ouvi sugerir que seria porque tomava drogas.
Não!
E as drogas cortavam o efeito do álcool.
Não há nenhuma evidência de drogas. Entre os amigos dele parece que sim, morfina e outras drogas que se usavam na época. Não, Pessoa era muito conservador, mesmo nos seus vícios. Café, muito café, muitos cigarros – fumava imenso – e álcool.
Li há pouco uma entrevista antiga ao Jorge Luis Borges em que ele dizia: ‘Sou um anarquista conservador’. Esta fórmula também se aplica a Pessoa?
Acho que sim. Pensa-se logo no banqueiro anarquista, do conto homónimo. O anarquismo do banqueiro consiste em ficar livre das ‘ficções sociais’ sem as derrubar. Pessoa, a seu modo e sem necessidade de acumular dinheiro como o banqueiro, era um homem extremamente livre. Vivia como queria. A noção de um anarquista conservador é interessante e penso que pode aplicar-se bem ao seu caso. Enquanto artista, queria partir a louça toda, incluindo a louça que se chamava modernismo. Cria movimentos de vanguarda como o paulismo e o interseccionismo para depois abandoná-los. Cansa-se até da heteronímia, que desmorona nos últimos anos da sua vida. E, coisa curiosa, começa a cultivar as quadras populares, escrevendo centenas delas. Algumas das suas quadras são típicas do género, mas noutras, mais sofisticadas, Pessoa preenchia esta forma simples da redondilha com pensamentos e sentimentos insólitos. O seu projeto era não tanto de derrubar as formas artísticas que existiam mas de renová-las. A este respeito, vale a pena recordar também as odes horacianas de Ricardo Reis. Ou as odes ditirâmbicas de Álvaro de Campos.
Ainda a propósito de bebida, tenho ideia de um texto em que ele chega ao espelho e diz que consegue ver através do corpo.
Se calhar está a pensar numa carta à Tia Anica, em que ele fala da sua experiência de escrita automática, e de ver através das outras pessoas – os ossos, os órgãos, tudo isso – e ainda descreve como uma vez se olhou ao espelho e viu quatro personagens.
A bebida dava-lhe acesso a esse outro mundo? Ao mesmo tempo, até que ponto há um sentido de autodestruição, quando ele bebe muito, não dorme, trabalha toda a noite? Seria uma espécie de suicídio lento?
Não sei se suicídio lento é a ideia melhor, mas é certo que não estava muito preocupado com a sua saúde.
A última frase que Pessoa escreve é ‘I know not what tomorrow will bring’. ‘Não sei o que me trará o dia de amanhã’. Sabia que ia morrer?
Sim, acho que sabia que ia morrer. Julgo que a frase pode ter duplo sentido: não sabia se haveria qualquer outra coisa depois da morte, outra coisa de que ele poderia fazer parte, e não sabia qual seria o futuro da sua obra.
Há aqueles registos de últimas palavras de homens célebres e já não sei quem foi que disse: ‘Do lado de lá não há nada’. Aqui seria qualquer coisa mais como: ‘Não sei o que há do outro lado’.
Falámos há pouco da janela: a janela sugere o papel de um espectador mas também sugere abertura porque as janelas são aberturas. Para mim, a grandeza da obra de Pessoa tem a ver com a sua grande abertura, e todo o estado inacabado da obra também tem a ver com isso. Não é uma obra fechada, é uma obra que pede a participação dos leitores. Pessoa queria sempre ter várias possibilidades, não queria fechar portas. Essa última frase também deixa tudo em aberto. ‘Eu não sei o que amanhã trará’. Resume um pouco a sua atitude, não só no penúltimo dia, mas durante toda a sua vida.
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