01 maio 2023

Carta de amor do mal (Bruno Nogueira)

Andam aí muitas liberdades e já sabemos no que é que isso dá, a dizeres frases feitas na assembleia, de joelhos na braguilha do populismo, a chupar aquilo tudo até ao fundo da garganta, com o populismo todo enfiado na boca.

ANDA CÁ MEU MENINO, senta-te aqui ao meu colo, deixa-me falar contigo um bocadinho, tu ainda vais fazer grandes coisas, estás a ouvir o que te digo, vais ensinar a estes gajos todos quem é que manda nisto tudo, eles todos a verem-te de fato e gravata a dizeres das boas, deus, pátria, família e trabalho para cima deles, meu lindo Salazar de borracha, meu rico menino, tão pequenino e já a mandar os ciganos para onde eles merecem ir, os pretos que voltem lá para Angola ou para Moçambique ou para Cabo Verde, ou lá para onde eles vivem que aquilo ainda é nosso, cá só queremos aqueles que têm a pele como a tua, que é a pele de quem sabe o que a vida custa, sempre a darmos hipóteses a esses sujos de pele mal-agradecidos, os portugueses de bem que fiquem cá, a tomar conta de ti e de quem estiver ao teu lado. Tão lindo, sempre a dizer o que o desespero quer ouvir, uma igreja universal do reino de deus em forma de gente, um menino que só quer a atenção dos crescidos, sem uma ideia nessa cabecinha, tão bonita essa cabecinha que é um barco à vela, cheio de vontade de brincar aos ditadores, a dar umas palmadinhas nas costas dos grandes ditadores deste mundo, que isto já só lá vai com meninos como tu, a remexer em dois cadáveres ainda quentes para mandar os Afegãos lá para a terra deles, a atirar culpas para todo o lado, os corpos ainda quentes, acabados de ser esfaqueados e tu já ali a esfregares o sangue na cara de toda a gente como se fosse o teu, as famílias a revolverem-se em dor e raiva e tu ali a manchar o luto com cuspo e propaganda, que agora é que se tem de aproveitar para se dar um empurrão aos votos, onde cheira a tragédia cheira a campanha, que orgulho tão grande meu doce menino, nem imaginas, um monstro que vê na morte um trampolim, tu é que sabes andar nisto meu amor, meu grande e pequenino amor, aprendeste comigo, até chorei quando te vi fazeres aquilo acreditas, eu que não me comovo com nada, sabes tão bem ser um cretino, só tive pena que não tivesses ido ao funeral chorar, ias fazer aquilo tão bem, até ia parecer que estavas a sofrer, ias todo de preto como as famílias que perderam os familiares que tu vampirizaste, ias ser o meu orgulho, mas tiveste medo, achaste que se calhar até para um monstro há limites, mas fizeste mal, tu tens o mundo todo à tua frente, não há limites para quem quer ser alguém, meu menino tão lindo, já a conseguir contorcer-se todo, sem coluna nenhuma, uma sanguessuga de fato, um abutre a rondar a morte para encher a barriga, não ligues às críticas, não caias nessa armadilha, eles têm inveja de alguém sem escrúpulos como tu, alguém que vende o corpo para se fazer homem. Estás tão crescido meu pequenino, já sabes ser vazio, pareces mesmo um menino crescido, ali a dizer aquelas frases de quem não tem dignidade nenhuma, de quem já faz o que for preciso para que olhem para ele, uma prostituta do discurso de ódio, por favor olhem para o meu menino, não estão a ver que ele precisa de atenção, ele quer o país dele limpo, mas há mal algum nisso, agora é tudo fascista por menos de nada, aquela de França, aquele do Brasil, todos tão orgulhosos de ti, esses meninos tão lindos que já fizeram tão bem a este mundo, a destruir a alegria e a liberdade, a limpar aquilo, que isto anda arejado demais sabes, andam aí muitas liberdades e já sabemos no que é que isso dá, a dizeres frases feitas na assembleia, de joelhos na braguilha do populismo, a chupar aquilo tudo até ao fundo da garganta, com o populismo todo enfiado na boca, tu sabes o que vende, ser oco de ideias e cheio de populismo vende, já estás pronto, sabes dizer uma coisa asquerosa aqui para dar notícia, e depois ser um cordeirinho manso ali, assim estás bem com deus e com o diabo, sabes que é importante cuspir ódio num jornal com uma frase que chame a atenção daqueles que são como tu, que antigamente é que isto andava bem, agora vieram estes sacanas e deram cabo disto tudo, tu é que vais endireitar o país, a lamber as sarjetas todas, e depois no dia a seguir pões essa carinha que só dá vontade de puxar essas bochechas, de quem afinal não disse nada daquilo que disse ontem, não foi isso que eu disse senhor jornalista, você percebeu mal, és muito habilidoso, porque assim a frase já está dita, és como os lacraus, que se escondem debaixo das pedras, uma pedra não morde, não mexe, é uma pedra caramba, mas se uma criança a levantar leva uma picada do lacrau e fica a torcer-se de dor, até pode morrer, tu és a pedra e o lacrau, sabe-la toda, já fizeste um amigo como tu noutro partido, porque também lhe cheira a poder custe o que custar, atropele quem atropelar, assim são pedras e lacraus juntos, são o melhor dos dois mundos, encontraste um amigo para brincar no recreio, podem trocar cromos no intervalo, ver quem tem o cromo que vale mais sangue, tenho muito orgulho em ti, nunca te esqueças disso, fazes-me lembrar eu com a tua idade, a mergulhar em tudo o que é lodo e a dizer que contigo vai ser tudo diferente, que vais fazer este país grande outra vez, um navegador de tragédias, um perdigueiro da fraqueza, um balão de frases feitas, um catavento da miséria.

Agora descansa, meu menino, descansa que amanhã há mais mal para fazer.

Juan Cavia

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