Se qualquer morte é sempre uma perda e, mesmo quando podia ser
expectável por diversos motivos, ainda assim é muitas vezes um choque, o
desaparecimento de Manoel de Oliveira é uma perda irreparável, daquelas
que deixam um vazio imenso.
Sim, tínhamos
presente que ele tinha 106 anos – e, derradeira ocasião pública, todos o
aplaudimos e prestamos tributo a 11 de Dezembro passado, dia desse
aniversário, a força e obstinação do Manoel em querer continuar a filmar
eram de tal ordem que chegávamos a suspeitar que se tinha libertado da
lei da morte e tornado no Cineasta Eterno. Não, também ele era afinal um
mortal, mesmo que, como poucos artistas – e não apenas cineastas –
deixe uma obra e um legado que perdurará.
Ainda assim o
choque é imenso e a circunstância é tanto mais difícil quando em 12 dias
perdemos – "perdemos", 1ª pessoa do plural, friso – os dois Mestres
ímpares da criação artística em Portugal, o Herberto e o Manoel, tão
diferentes e contudo aproximáveis no paralelismo das absolutas
singulares, e na irredutível integridade do seu ofício.
E o choque
é grande, muito grande, quando se perde alguém com o qual se teve o
privilégio de conviver durante 35 anos, por vezes partilhando os mais
inusitados momentos, como me sucedeu com Manoel de Oliveira.
Claro
que ter realizado filmes até aos 105 anos faz por si só de Oliveira um
caso único na história do cinema. Mas recordá-lo apenas por isso, ou
mesmo sobretudo por isso, é tremendamente redutor e injusto. Não é
preciso gostar de todos os seus filmes (e há alguns, como a
Divina Comédia e
Um Filme Falado,
de que não gosto nada) para ainda assim reconhecer, sem a menor das
dúvidas, que foi um dos autores maiores da arte cinematográfica.
Mas
o seu percurso de mais de 85 anos de filmes foi difícil, problemático,
pleno de peripécias, de controvérsias e também de lugares-comuns, que
perduram. Ainda há pouco, depois da notícia da morte, alguém dizia que
achava Oliveira “um chato” e que só gostava de
Aniki-Bóbó.
Pois
é, mas esse filme, hoje um clássico incontestável da cinematografia
portuguesa, foi um desastre comercial, quando da estreia em 1942. De
resto já havia o precedente do 1º filme,
Douro Faina Fluvial,
tumultuosamente recebido, pateado mesmo, quando da 1ª apresentação em
1931, num Congresso Internacional de Crítica em Lisboa, o que de resto
deixou perplexos alguns influentes participantes estrangeiros que, antes
pelo contrário, aclamaram o filme.
Esses dois factos
tornar-se-iam aliás, retrospectivamente, na proto-história de
estereótipo daninho e perene, que se consagrou com a polémica recepção a
O Passado e o Presente – regresso do autor à ficção, depois de um lapso forçado de 30 anos, desde
Aniki-Bóbó,
ocasião em que João César Monteiro escreveu que “Oliveira é um cineasta
demasiado grande para um país tão pequeno”, e sobretudo com a
catastrófica exibição televisiva em série de quatro episódios, na RTP/1,
em Outubro/Novembro de 1978, de
Amor de Perdição, que
desencadeou uma rejeição, animosidade e mesmo ira sem precedentes (e
aliás a níveis que nunca mais se voltaram a verificar), a que sucedeu a
aclamação crítica internacional do filme propriamente dito, sobretudo
com a estreia em França, consagrando o tal pernicioso lugar-comum, o de
que Oliveira era “um cineasta incompreendido em Portugal e aclamado na
Europa”, o que, diga-se, tendo base factual nos episódios referidos, é
largamente injusto e parcial.
E já que falamos em factos, então aponte-se um, que desmente o tal lugar-comum: depois da clamorosa rejeição de
Amor de Perdição, o filme seguinte,
Francisca –
que aliás pareceu ter firmado um “consenso crítico” sobre Oliveira, mas
já lá iremos – teve 70.000 espectadores em Portugal, 70.000, o que é
assombroso para uma obra tão difícil e de 3h, tal como depois '
Non', ou a Vã Glória de Mandar foi
outro sucesso público – portanto, quanto ao “incompreendido em
Portugal”, estamos esclarecidos, ao menos que o lugar-comum tem de ser
muito matizado.
Claro que houve outros filmes que correram pior,
alguns até bastante mal, o que de resto em nada perturbava Oliveira, que
chegou a dizer ser “indiferente que um filme tenha 1 espectador”. Claro
que tal declaração provocou a acrescida ira dos muitos detractores –
incluindo aliás ex-defensores incondicionais – que com os anos se foram
acumulando, sobretudo no próprio meio cinematográfico: “veja-se isto, um
tipo que está sempre a receber subsídios públicos, enquanto nós temos
que esperar e quantas vezes estar sujeitos à rejeição de projectos, e se
está nas tintas para o público português!”.
O estatuto de
“excepção” de Oliveira tinha de facto sido politicamente consagrado
desde 1980, sendo Secretário de Estado da Cultura Vasco Pulido Valente,
depois da aclamação internacional de
Amor de Perdição –
Oliveira tornava-se num “valor nacional” – e as reacções de inveja e
animosidade que suscitou foram inumeráveis ao longo dos anos.
O
seu destaque fez entendê-lo muitas vezes como o Pai e o Mestre, quando
de facto e em rigor, tendo ele aberto as portas da difusão internacional
ao cinema português, foi sim um autor inconfundível e inimitável, tido
às vezes no exterior como o expoente de uma pretensa “escola
portuguesa”, quando antes não há o mais mínimo dos traços de uma “escola
Oliveira” no cinema português. Mas o tal estatuto de “excepção” e as
polémicas consequentes levaram sim muitas vezes, e virulentamente, à
noção de um “Pai Tirano” cuja primazia “impedia” que outros filmassem.
Mas sobre estes estereótipos enfadonhamente repetidos há ainda alguns pontos a rebater.
Por
exemplo sobre isso de “chato”. Certamente que alguns filmes de Oliveira
são “difíceis” e exigem grande disponibilidade e concentração, caso do
magistral
O Dia do Desespero, sobre o suicídio de Camilo. Mas a adjectivação radica-se ainda no trauma do
Amor de Perdição em
1978. Posso perguntar porque é que não têm pejo em repetir isso do
“chato” pessoas que obviamente nem se deram ao esforço, nos últimos 35
anos, de ir ver um filme de Oliveira?!
Com o “chato” vai de par
outro estereótipo, o dos “planos longos, infindáveis”, por exemplo
repetido à exaustão pelo humorista Herman José (é uma ironia, mas sempre
me pareceu que em
A Caixa há um tremendo erro de
casting:
o papel do habitual Luis Miguel Cintra assentaria que nem uma luva sim a
Herman José). Ora bem, quando em 1981 fizemos, o José Nascimento e eu,
um documentário para a RTP/1 sobre e com Manoel de Oliveira, que na
altura tinha concluído
Francisca, ele dizia “o cinema é a
fixação audiovisual de uma representação teatral” (como também algo tão
desconcertante como “a minha técnica cinematográfica foi muito
influenciada pela cobertura televisiva dos Jogos Olímpicos de Tóquio”) e
foi nesse período que sim os seus filmes patenteavam a mestria de
longos planos-sequências.
Mas logo depois as coisas começaram a mudar, e então
O Meu Caso (1986) é um decisivo filme-charneira e de viragem, em que Oliveira como que regressa às origens, e a
Douro, Faina Fluvial,
com um montagem trabalhada e uma sucessão rápida de planos, por vezes
mesmo em clássico campo/contracampo, quais longos planos fixos, qual
quê!
E quanto a essa “indiferença” perante o número de
espectadores de um filme, há que esclarecer bem: de facto em nada se
preocupava com números e bilheteiras, mas que os seus filmes fossem
estreados, e estreados no país, dados a conhecer a um público português,
mesmo que depois só houvesse um espectador (era uma
boutade,
claro) era para ele um ponto de honra e uma das obstinações da sua
integridade artística; teve aliás um desgosto com o facto do longuíssimo
Soulier de Satin (quase 7h!) não ter tido estreia em sala.
Com
isto se liga outro aspecto, capital, que leva aliás a seriamente
matizar essa coisa do “cineasta incompreendido em Portugal e aclamado na
Europa”. Ora, há que ter em conta que o Manoel se considerava
profundamente “português” e “cineasta português”.
De ‘
Non’, ou a Vã Glória de Mandar,
obra de reflexão sobre a história portuguesa, pela perspectiva das
derrotas, como nenhuma outra há – no cinema ou noutros campos – ao
derradeiro
O Velho do Restelo, passando por
Palavra e Utopia,
O Quinto Império – Ontem Como Hoje ou
Painéis de São Vicente Oliveira não deixou de “indagar Portugal” e, digamos, as suas vicissitudes e “destino”.
Mas,
a propósito, há um outro aspecto a salientar, que não é usualmente
referido: foi expoente e uma específica cultura, do Porto e nortenha,
vincadamente local mas também cosmopolita. Ao longo do tempo ele foi
filmando autores dessa cultura, Régio, Camilo, Agustina, até enfim, os
que faltavam, Raul Brandão na última longa-metragem,
O Gebo e a Sombra,
e, de modo explícito (porque implicitamente a sua influência já pairava
em filmes anteriores) Teixeira de Pascoaes no derradeiro
O Velho do Restelo.
Este
facto é aliás por si só extraordinário: dir-se-ia que, já depois dos
100 anos, e mesmo que deixando projectos não realizados como
O Retrato de Dorian Gray ou
A Igreja do Diabo de Machado de Assis, teve a energia e clarividência que completar os projectos longamente maturados que lhe faltava realizar!
Para quem bem conhecia Oliveira, esses dois filmes foram também perturbantes premonições. De ‘
Non’,
em 1990, se disse que era o seu “filme-testamento”; pois bem, só
longas-metragens ainda fez mais 21! De resto, ele próprio fez
declarações e estabeleceu metas que, felizmente, acabaram por não se
cumprir: por exemplo, quando da rodagem de
A Divina Comédia ele disse(-me) que o seu “último filme” seria
O Dia do Desespero (o
“último filme” concluir-se-ia então com um suicídio!) mas acabou por o
fazer logo depois, só a seguir tendo havido o que seria “o filme antes
do último”, “a nova Bovary”, isto é,
Vale Abraão.
Mas com
O Gebo e a Sombra saí
da projeção desfeito, arrasado por tal magistralidade, mas também por
uma clara percepção testamentária, então sim, e voltei-me para o
produtor Luís Urbano e disse-lhe “este é mesmo o último”. E então
O Velho do Restelo era, é, clarissimamente a palavra final.
Mas
há em toda a história do cinema outro autor assim que com tão grande
persistência tenho insistido e conseguido concluir o que de fundamental
se propunha?!
Insistiu-se muito em que Oliveira em imprevisível e
imprevisto, escamoteando quanto foram acalentados e planeados projectos
que, como ‘
Non’ e
O Velho do Restelo, demoraram afinal mais de 10 anos a ser concretizados.
Claro que no seu desejo de filmar sem cessar, e como alguns processos se atrasassem, outros surgiam repentinamente.
Ao
longo de 35 anos não me faltaram episódios memoráveis com o Manoel,
desde o susto sem precedentes que tive no “lugar do morto” numa ida ao
Douro, e, com mais de 70 anos, o Manoel, que fora corredor de automóveis
(é como galã com um potente automóvel que ele surge em
A Canção de Lisboa, em 1933!,
himself,
sem ser uma personagem) continuava a carregar no acelerador, a um dia,
numa pastelaria ao pé de sua casa em que ele me começou a contar o
projecto de
Belle Toujours, retomando a
Belle de Jour de
Buñuel, com as mesmas personagens e actores, Catherine Deneuve
(acabaria por ser Bulle Ogier) e Michel Piccoli, e esse intento de
alguém, um mestre do cinema, dar continuação mais de 30 anos volvidos a
uma obra-prima de outro mestre, pareceu-me de uma ousadia e ineditismo
tais que achei melhor não transmitir a mais ninguém o que o Manoel
inesperadamente me contara.
A situação mais delirante ocorreu em,
pasme-se, Telluride, no alto das Montanhas Rochosas. Na Quinzena dos
Realizadores do Festival de Cannes nesse ano de 1993
Vale Abraão fora
aclamado, numa ovação de pé, de mais de 10 minutos, coisa sem
precedentes. Todos os festivais se precipitaram para programar o filme e
Tom Luddy, director de Telluride, pediu-me se conseguia levar eu
próprio, à mão, uma cópia do
Douro, Faina Fluvial, e lá fui eu,
de Lisboa a Nova Iorque, de Nova Iorque a Denver, de Denver a
Telluride, carregado com as latas para se fazer uma homenagem-surpresa a
Oliveira. Telluride sendo um festival muito particular, mesmo de
“comunidade cinéfila”, havia uns tantos realizadores presentes, Wim
Wenders, John Boorman, Bertrand Tavernier, etc, e Tavernier, cinéfilo
inveterado como poucos, e que não conhecia o filme, exclamava no final
“mas isto é muito melhor que o Ruttmann!”, que Oliveira sempre reclamara
como modelo.
No dia seguinte fomos tomar qualquer coisa e eis
senão quando o Manoel, dando continuamente gargalhadas, me começou a
narrar em detalhe o seu próximo filme que seria
A Caixa, e de repente eu dei-me conta do inusitado da situação: parecia que tínhamos viajado no tempo, porque de facto estávamos num
saloon do
far-west e o Manoel contava-me desopiladamente o seu inesperado projecto de próximo filme.
Já
que refiro uma situação ocorrida em tais paragens, será que se lembram
que um ícone americano, Clint Eastwood, fez questão de estar presente na
homenagem a Oliveira em Cannes, quando do 100º aniversário, e ir
expressamente saudá-lo? É preciso esperar pelo
In Memoriam nos próximos Óscares em que de certeza Oliveira figurará, para então sim, ter a noção de que ele era mundialmente reconhecido?
Contudo citei
A Caixa como exemplo dos projectos imprevistos de Oliveira. Aconteceu também haver filmes que tomaram rumos imprevistos. Por exemplo
Le Soulier de Satin.
Primeiro foi filmada, em 35mm, a quarta e última jornada, que de facto é
um apêndice à "Tetralogia dos Amores Frustrados", e à magnificente
sucessão Benilde ou A Virgem Mãe,
Amor de Perdição e
Francisca,
encerrado até num certo auto-academismo. Depois Oliveira esteve uns
meses no estúdio, rodando em 16mm as três outras jornadas, e
manifestam-se entusiasmou-se numa fúria criativa, regurgitando de
invenções num de todo inesperado regresso a Méliès.
Mais incrível ainda, e distintivo de Oliveira, são planos inesperados e contracampos surpreendentes. Vejamos em
Aniki-Bóbó Teresinha
e Carlitos que olham para a montra da Loja das Tentações, e o plano
seguinte sobre eles vem de dentro, como se fosse o olhar da boneca! Ou
em
Francisca, quando José Augusto está no sofá acariciado pela sua amante Raquel e o contracampo vem de dentro da lareira! Ou em
Je Rentre à la Maison,
quando do exterior Piccoli contempla a montra de uma sapataria, ficamos
na expectativa de que o plano seguinte incida especificamente num par
de sapatos mas não, é da parte de dentro da montra, com ele dentro da
loja já a comprar os sapatos. Esta capacidade de surpreender, de não nos
deixar adivinhar o plano seguinte, e isso, de que Oliveira era capaz, é
sinal distintivo só dos maiores cineastas.
Definir “o estilo de Oliveira” é todavia assaz complexo, senão infrutífero. Proporia ainda assim duas perspectivas.
O 1º parafraseando o título de um filme seu, colhido em Agustina,
O Princípio da Incerteza, é o que designaria por “Princípio da Inquietação”, e mesmo de alguma angústia claustrofóbica. Logo em
Douro há de facto um espaço fechado, com o guarda que vigia a barra, e a perturbação da carroça descontrolada e o pavor da mulher; em
Aniki-Bóbó, filme aliás, sob a aparência doce, pleno de medos, há o miúdo que escorrega na ravina; há o indescritível e extraordinário
A Caça; e depois, com algumas raras excepções documentais, essa inquietação é um factor recorrente –
Inquietude se intitula de resto um filme.
O 2º é o mais complexo mas também certamente o mas singular. “A alma é um vício” diz Fanny em
Francisca,
frase que aliás é emblemática quer de Agustina, quer de Oliveira. Ora
ele foi, e de que maneira, um cineasta das tentações (e voltamos à Loja
das Tentações do Aniki) mas também o de um propósito de “filmar o
infilmável”, a alma, os fantasmas do além, como esse entidade misteriosa
que engravida
Benilde, a Virgem-Mãe, o alucinante final de
Francisca (e,
a meu ver, entre várias obras-primas, esses são os dois filmes
máximos), ou, crucial, o espírito que levanta do corpo morto de
Angélica, projecto crucial que acabou por ser concretizado ao fim de
muitos anos – e, em paralelo, de “explicar o inexplicável”, como o
próprio disse, esse “mistério” que seria Portugal.
E estas aproximações a um Além eram as de um grande cineasta religioso, a par de um Dreyer, um Bresson, um Bergman.
Era Manoel de Oliveira (1908-2015), um dos autores maiores da arte cinematográfica.
Adeus, Manoel.