"Com a morte de Manoel de Oliveira fica um exemplo. Ele foi o
sustentáculo de tudo o que de interessante se fez no cinema português, e
fez-se muito, e foi tudo a partir da sua obra. É como se Oliveira
tivesse aberto a porta para deixar as pessoas passarem por um caminho em
que ele nunca confundiu o trabalho dele de cineasta com o do cinema
comercial. E que foi sempre de defesa do cinema como actividade
artística, de criação absoluta em que, naturalmente, o realizador é o
grande criador, em pé de igualdade com um pintor ou um escritor.
Essa foi a grande marca do cinema português, não
só de Oliveira mas de outros cineastas que se lhe seguiram, e que devem
muito a ele e à sua intransigência.No meu caso, funcionou como
um facto de profunda admiração. Eu comecei a perceber o que era o
cinema, e a gostar de cinema, quando vi O Acto da Primavera. Eu
não era actor, não era nada. De repente, fui ao cinema ver aquilo, que
para mim era apenas a filmagem de um Auto da Paixão feito por amadores
de Trás-os-Montes, e o filme mostrou-se-me uma coisa absolutamente
arrebatadora. Não só pelo aspecto religioso, que, evidentemente, era
muito importante. Mas também pelo que a câmara revelava sobre aquelas
pessoas, sobre a relação do homem com deus e com a vida. E percebi que o
cinema era uma arte muito importante, quando encarada daquela maneira.
Daí veio uma atitude que se se prolongou durante toda a vida.
O
cinema não é uma profissão. Eu nunca fui um profissional de cinema, fui
sempre um actor que colaborou como artista na obra de outros artistas. E
isto é uma marca que o Manoel deixou, e a quem todos os realizadores de
cinema português têm que ficar agradecidos.
Não quer dizer que
vão fazer um cinema igual ao do Manoel. Aliás, nota-se bem que os
cineastas mais jovens têm o respeito que normalmente se tem por um
grande artista, mas o cinema que fazem já não tem nada a ver com o do
Manoel. Naquela altura, foi muito importante um cinema em que a palavra
era também muito importante. Isso também foi um factor de ligação entre
mim e ele. Porque tenho formação em estudos literários e linguísticos.
Foi um encontro muito importante, quando me convidou e comecei a
trabalhar com ele.
O Manoel tinha um pudor gigantesco nas relações
humanas. Muito poucas vezes o vi partilhar questões mais íntimas,
aspectos mais delicados ou sobre os quais não se sentia seguro. Era um
homem que gostava da dúvida. Basta olhar para os filmes dele para se
perceber que está permanentemente à procura de uma certeza sobre a vida.
Sobre a existência humana, sobre a relação com alguma coisa de
transcendente, com aquilo que se costuma chamar deus. Os filmes dele são
essa busca permanente. Não um filme em especial, mas todos, em
sequência. É como se fosse a própria actividade de pensar, de reflectir
sobre a vida e tentar descobrir através da câmara. É o trajecto dele, a
vida dele, através do cinema.
Nunca tive uma grande intimidade com
ele, porque ele tinha sempre um grande respeito pelas outras pessoas, e
não era só comigo. No sentido em que eu sou eu, você é você, em que
você pensa o que tem que pensar; eu penso o que tenho que pensar. O
interessante é que, quer a gente se oponha, quer esteja de acordo, fá-lo
sempre como pessoas adultas. Foi sempre assim.
Mas o Manoel era
uma pessoa extremamente afectiva. Percebeu que eu tinha por ele uma
amizade pessoal enorme. Muitas vezes o vim visitar, e as nossas
conversas iam mais longe. Tocavam pontos que tinham a ver, de facto, com
o que se pensa sobre estar vivo. Às vezes, era eu que ficava muito
tempo à espera, sem dizer nada. Mas depois, de repente, a conversa
começava a fluir, e ele dizia coisas espantosas, duma reflexão
profundíssima, e sempre muito curioso sobre o que eu pensaria sobre os
mesmos assuntos.
Era evidente que isso me dava uma grande
satisfação, e percebi que ele tinha também um respeito por mim muito
grande. Quando foi a atribuição do Prémio Pessoa [2005], fiquei de boca
aberta quando vejo o Manoel a entrar pela sala dentro. Foi a Lisboa de
propósito para estar presente na atribuição. Como se tivesse muito
orgulho em que eu tivesse uma existência separada da dele.
Isso
também foi muito estimulante. Mas não quer dizer que ele gostasse tanto
dos espectáculos que eu fazia como eu gostava dos filmes que ele fazia.
Ele foi ver a Cornucópia muitas vezes — não foi mais vezes, por causa
dos seus problemas de surdez. E das poucas observações que me fez, mas
que me ficaram sempre na cabeça, porque sempre dei muita importância ao
que ele pensava, este exemplo: ‘Tem efeitos a mais e, no teatro, não é
preciso nada; basta ter um actor em cena’. São coisas que, no fundo,
tocam também em convicções profundas da minha parte, mas que a gente
nunca tem coragem de assumir com esta clareza, com esta radicalidade."
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