O Ninguém e o Toda a Gente
Diz um amigo: "há dois gajos que nunca me apresentaram — o Ninguém e o
Toda a Gente". E, no entanto, continua, "passam a vida a falar-me
deles: “Ninguém gosta disto”, “Toda a gente diz que é assim”. E eu
insisto: apresentem-me esses gajos! Quem é o Ninguém que não gosta
disto? Quem é o Toda a Gente que não quer saber daquilo?". Enquanto não
os conhecer, sugere ele, não acredita nas opiniões que são apresentadas
em nome deles.
O "Ninguém" e o "Toda a Gente" são as personagens
preferidas de quem não tem a coragem de dizer o que pensa ou não deseja
assumir a sua falta de convicção. Inventam-se então estas
testas-de-ferro imaginárias para, como ventríloquos ao contrário,
exprimirmos os preconceitos que são supostamente deles.
Lembrei-me
muitas vezes do Ninguém e do Toda a Gente durante o fim-de-semana,
enquanto ouvia os comentários televisivos às eleições presidenciais. A
classe comentadeira já tirou há muito a conclusão de que estas eleições
presidenciais não têm interesse; já estavam convencidos disso bem antes
das eleições começarem. Não porque o achassem verdadeiramente (se é que
ainda acham alguma coisa), mas porque lhes dá mais jeito assim: por um
lado, dá menos trabalho, por outro, fazem-se a si mesmos, por
comparação, mais interessantes do que o resto.
Como é natural, o
Ninguém e o Toda a Gente foram convocados. "Ninguém está interessado em
saber quais são as diferenças entre os candidatos". "Toda a gente se
desinteressou destas eleições". E eu ouço a voz do meu amigo: mas qual
Ninguém? A prima, a tia, o canário? Qual Toda a Gente? Toda a gente
mesmo ou só aquela que comenta nas TVs?
Se perderam a noção da
importância das eleições presidenciais, tenham a coragem de o dizer. Se
acham que elas são, naturalmente, muito menos importantes do que vocês,
admitam-no. Mas não cometam a cobardia de endossar as vossas preguiças e
indiferenças a todo um povo.
Vou dar-vos uma novidade. Os
comentários televisivos, quando são vistos por bastante gente, chegam a
trezentas mil pessoas. É muito. Mas é bastante menos do que os debates
televisivos entre candidato presidenciais: o Sampaio da Nóvoa Vs.
Marcelo chegou a um milhão e quatrocentos mil espectadores. Há muita
gente interessada.
Mas há também, ainda é sempre, um esforço em
curso para adormecer o país, esbater as diferenças e desvalorizar as
suas escolhas. É fácil de fazer: basta não mencionar os programas
políticos dos candidatos, quando os há, e selecionar as imagens mais
fúteis e os comentários mais inúteis. No fim, embrulhar e proclamar que a
culpa é do povo, que supostamente não se interessou.
Este
processo, que convém muito ao tipo de elitismo egoísta vigente em
Portugal — aquele elitismo que consiste em empurrar o resto da população
para baixo em vez de a puxar para cima — esvazia a democracia e atrasa o
país.
Gostaria de dizer que, quando Ninguém se preocupa com isto,
Toda a Gente se prejudica. Mas é mais complexo do que isso. Alguns
sofrem com este estado de coisas. Outros beneficiam.
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