Há um ano concorreu e venceu. E este ano, sem competir, voltou a conquistar. Ouvidas todas as canções da noite não se vislumbrou outra participação que tivesse o mesmo nível. Foi ao intervalo que Salvador Sobral, na companhia do ídolo Caetano Veloso, e do pianista Júlio Resende, voltou a Amar pelos dois, lidando com a nudez musical, o quase silêncio, a curva das palavras, conseguindo, os três, criar qualquer coisa elevada, íntima, comovente. Antes havia cantado Mano a mano, o novo single, e deu-se a mesma simbiose entre piano, voz, espaço e emoção.
Há dias, em conversa com ele, havia-nos dito que não acreditava que a sua vitória no ano passado viesse a alterar o padrão musical do festival, como alguns, romanticamente, chegaram a antecipar. E assim aconteceu. Tudo como se previa. Profissionalismo estilizado. Sonoridades pop internacionais que tentam apenas ser funcionais. Música europeia burocrática, a que falta alma, conceitos, nervo e um contexto sociocultural que as afirme como vida e não apenas como mero produto descartável.
É verdade que houve canções que revelam inquietações humanitárias ou inclusivas, como a francesa, a italiana ou a irlandesa, e que é sempre relevante retirar leituras sociopolíticas das actuações ou votações, da mesma forma que pode ser divertido observar essa competição à parte que são as prestações mais excêntricas, como a húngara, a israelita ou a moldava. E no entanto, paradoxalmente, apesar da agitação e diversidade estilística, do metal às baladas R&B americanizadas, que as canções emanam, parece tudo monocromático, porque exteriorizado. É como se tudo fosse estranho às próprias canções. É a encenação que as serve e não o contrário. Observa-se o seu interior e não está lá quase nada. Vazio.
Dessa forma, genericamente, o que se ouviu foi sofrível. Entre algumas excepções, como a canção francesa, alemã ou sueca, esteve também a portuguesa, O jardim, defendida por Cláudia Pascoal e Isaura, apesar do último lugar. Não criaram grande empatia até porque a pesada herança e as comparações com Salvador a isso impeliam, mas é uma canção pop electrónica que produz envolvimento, através da simplicidade dos movimentos harmónicos. No meio do artifício reinante, a forma honesta como as duas portuguesas defenderam a sua canção foi salutar.
No final, acabou por ganhar a exuberância pop da canção de Israel, interpretada por Netta, prevalecendo a votação do público, dando por terminada uma cerimónia que começou muito bem com fado. Na abertura, Ana Moura e Mariza trataram de mostrar com desenvoltura o lado mais consolidado e poetizado do país, enquanto Branko (na companhia de Sara Tavares, Dino D’Santiago, Mayra Andrade e Plutónio) ou os Beatbombers (DJ Ride e Stereossauro) trataram de expor uma identidade mais cosmopolita, em construção, mas talvez até mais ajustada à realidade do país de hoje.
De resto, foi uma noite em que a RTP voltou a mostrar estar ao nível do que se lhe exigia. Apesar do incidente de segurança quando um homem invadiu o palco durante a actuação da inglesa SuRie, o que se viu foi um excelente palco, luzes, realização e som. Um quarteto de apresentadoras (Daniela Ruah, Catarina Furtado, Sílvia Alberto e Filomena Cautela) que se revelou eficaz. E uma dupla de comentadores (Hélder Reis e Nuno Galopim) que tinha a difícil tarefa de ser viva sem ser histriónica, adicionar conhecimento sem se focar no que é lateral, e conseguiu-o, o que, diga-se, está longe de ser a norma em acontecimentos deste género.
Ficou a ideia que, em termos globais, a organização, não só na cerimónia, como nos dias que a antecederam, esteve ao nível do melhor que já se fez neste âmbito. Apesar do investimento na operação ter sido o menor desde 2008 (cerca de vinte milhões de euros), a verdade é que, ainda assim, representou um grande esforço para a televisão pública portuguesa. Especular-se-á sempre como olhar para um evento deste género: mera despesa ou investimento, tendo em atenção a audiência gigantesca, a cobertura de mais de mil jornalistas, os alojamentos esgotados, o comércio agitado, enfim, a projecção do país, a cadeia de valor do turismo acrescentado e o impacto económico global do evento.
Mas nem tudo se mede por números. Na forma como se mostrou o país não se evitou o traço grosso — inevitável num acontecimento de massas como este —, mas ainda assim prevaleceu quase sempre o equilíbrio, tentando-se abranger múltiplos olhares, experiências, patrimónios e formas de sentir, misto de história e agitação do presente. Por último, há que referir que nada disto teria sido possível se a RTP não tivesse encetado no ano passado um trabalho de revisão do modelo como era encarado o festival da canção, elevando nitidamente a fasquia.
Depois foi com Amar pelos dois, a canção que acabou por atribuir sentido ao que se estava a fazer, acontecendo no momento certo e mostrando o caminho. Espera-se que não seja pelo último lugar na classificação deste ano que agora se vacile. Os irmãos Sobral venceram no ano passado, obrigando à organização este ano do evento em Portugal. Já está. Perdemos. Mas a organização convenceu e mostrou-se música portuguesa digna num acontecimento em que essa qualidade nem sempre está presente. Ganhámos, outra vez.
Há dias, em conversa com ele, havia-nos dito que não acreditava que a sua vitória no ano passado viesse a alterar o padrão musical do festival, como alguns, romanticamente, chegaram a antecipar. E assim aconteceu. Tudo como se previa. Profissionalismo estilizado. Sonoridades pop internacionais que tentam apenas ser funcionais. Música europeia burocrática, a que falta alma, conceitos, nervo e um contexto sociocultural que as afirme como vida e não apenas como mero produto descartável.
É verdade que houve canções que revelam inquietações humanitárias ou inclusivas, como a francesa, a italiana ou a irlandesa, e que é sempre relevante retirar leituras sociopolíticas das actuações ou votações, da mesma forma que pode ser divertido observar essa competição à parte que são as prestações mais excêntricas, como a húngara, a israelita ou a moldava. E no entanto, paradoxalmente, apesar da agitação e diversidade estilística, do metal às baladas R&B americanizadas, que as canções emanam, parece tudo monocromático, porque exteriorizado. É como se tudo fosse estranho às próprias canções. É a encenação que as serve e não o contrário. Observa-se o seu interior e não está lá quase nada. Vazio.
Dessa forma, genericamente, o que se ouviu foi sofrível. Entre algumas excepções, como a canção francesa, alemã ou sueca, esteve também a portuguesa, O jardim, defendida por Cláudia Pascoal e Isaura, apesar do último lugar. Não criaram grande empatia até porque a pesada herança e as comparações com Salvador a isso impeliam, mas é uma canção pop electrónica que produz envolvimento, através da simplicidade dos movimentos harmónicos. No meio do artifício reinante, a forma honesta como as duas portuguesas defenderam a sua canção foi salutar.
No final, acabou por ganhar a exuberância pop da canção de Israel, interpretada por Netta, prevalecendo a votação do público, dando por terminada uma cerimónia que começou muito bem com fado. Na abertura, Ana Moura e Mariza trataram de mostrar com desenvoltura o lado mais consolidado e poetizado do país, enquanto Branko (na companhia de Sara Tavares, Dino D’Santiago, Mayra Andrade e Plutónio) ou os Beatbombers (DJ Ride e Stereossauro) trataram de expor uma identidade mais cosmopolita, em construção, mas talvez até mais ajustada à realidade do país de hoje.
De resto, foi uma noite em que a RTP voltou a mostrar estar ao nível do que se lhe exigia. Apesar do incidente de segurança quando um homem invadiu o palco durante a actuação da inglesa SuRie, o que se viu foi um excelente palco, luzes, realização e som. Um quarteto de apresentadoras (Daniela Ruah, Catarina Furtado, Sílvia Alberto e Filomena Cautela) que se revelou eficaz. E uma dupla de comentadores (Hélder Reis e Nuno Galopim) que tinha a difícil tarefa de ser viva sem ser histriónica, adicionar conhecimento sem se focar no que é lateral, e conseguiu-o, o que, diga-se, está longe de ser a norma em acontecimentos deste género.
Ficou a ideia que, em termos globais, a organização, não só na cerimónia, como nos dias que a antecederam, esteve ao nível do melhor que já se fez neste âmbito. Apesar do investimento na operação ter sido o menor desde 2008 (cerca de vinte milhões de euros), a verdade é que, ainda assim, representou um grande esforço para a televisão pública portuguesa. Especular-se-á sempre como olhar para um evento deste género: mera despesa ou investimento, tendo em atenção a audiência gigantesca, a cobertura de mais de mil jornalistas, os alojamentos esgotados, o comércio agitado, enfim, a projecção do país, a cadeia de valor do turismo acrescentado e o impacto económico global do evento.
Mas nem tudo se mede por números. Na forma como se mostrou o país não se evitou o traço grosso — inevitável num acontecimento de massas como este —, mas ainda assim prevaleceu quase sempre o equilíbrio, tentando-se abranger múltiplos olhares, experiências, patrimónios e formas de sentir, misto de história e agitação do presente. Por último, há que referir que nada disto teria sido possível se a RTP não tivesse encetado no ano passado um trabalho de revisão do modelo como era encarado o festival da canção, elevando nitidamente a fasquia.
Depois foi com Amar pelos dois, a canção que acabou por atribuir sentido ao que se estava a fazer, acontecendo no momento certo e mostrando o caminho. Espera-se que não seja pelo último lugar na classificação deste ano que agora se vacile. Os irmãos Sobral venceram no ano passado, obrigando à organização este ano do evento em Portugal. Já está. Perdemos. Mas a organização convenceu e mostrou-se música portuguesa digna num acontecimento em que essa qualidade nem sempre está presente. Ganhámos, outra vez.
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