14 novembro 2020

Diário da peste por João M. Tavares


Conversas Confinadas por Gonçalo M. Tavares

Engraçado como ele passa facilmente de uma história a outra, como se fosse num caminho e mudasse o percurso, virasse à direita, subisse à esquerda, contornasse obstáculos; leva-nos a passear com ele, várias histórias num curto caminho.

Diário da Peste,

18 de Junho

Penso num fim do mundo que passa despercebido.
Já chegou, dizem uns.
Já chegou mas já foi embora, dizem outros.
O ballet de Nova Iorque cancela apresentações até 2021.
Um ginásio da Califórnia cria cápsulas individuais.
O esforço é solitário, e tal é mais do que justo.
Em 2020, o fim do mundo é invisível.
O fim do mundo aparece e não o vemos. E nada de essencial altera.
Quando muito adia a performance exterior do mundo.
O espectáculo prossegue, mas em 2021.
Debord se estivesse vivo andaria de avião por cima das cidades a deixar cair folhetos:
Não trabalhes nunca!
Apaguem os ecrãs!
Longa vida ao efémero!
Deixem-nos viver!
Estudo a Cloud Appreciation Society - Sociedade de Apreciação das Nuvens.
O fundador é inglês, Gavin Pretor-Pinney.
Entrevista antiga, ele diz que as nuvens são "injustamente difamadas".
E diz que estão por todo o lado os "fascistas do sol".
Indivíduos que tentam espalhar a ideia “de que só seremos felizes debaixo de um céu azul e limpo”.
O céu tem estado azul e quase limpo.
Albert Cossery dizia que nunca quis ter um belo carro.
Que só se quis ter a si próprio:
“Saio à rua com as mãos nos bolsos e sinto-me um príncipe.”
Não trabalhar, longa vida ao efémero, deixem-nos viver.
Enviaram na semana passada uma sonda para estudar as origens do Sistema solar.
Saber o começo, outra vez.
Na China dizem que a segunda vaga da pandemia veio da Europa.
Onde começa o segundo começo, o terceiro começo e etc.
Documentário sobre terra planistas.
Os terra planistas fazem muitas experiências.
Todas chegam à conclusão evidente que é impossível a terra ser uma esfera.
Economia: Reino Unido com valores próximos de 1963.
Avanço pela cidade e as lojas estão com bandeira a meia haste. Um velório que tenta fazer sapateado para parecer festa.
Baudrillard e algo importante.
Muitas culturas têm imaginários da sua origem, poucas têm imaginários sobre o seu fim.
E algumas não sabem nem imaginam como terão começado e como irão acabar.
Estamos no meio e olhamos para os dois lados e nada vemos.
Falta uma ciência do apocalipse.
Em 2020, os apocalípticos, cientistas e outros, saíram à rua e já andam à solta.
Do Brasil, recebo mensagens: o céu azul está negro.
Nuvens como aquilo que educa os meninos da rua.
Não há professores e os meninos apocalípticos estão abandonados debaixo do sol.
Drummond de Andrade.
“Entre as desesperanças da hora,
e à falta de melhores notícias,
venho informar-lhes que nasceu uma orquídea.”
Debaixo do sol limpo, os apocalípticos saem à rua. E debaixo do solo também acontecem coisas.
Detectou-se o vírus nos esgotos já em Dezembro na Europa.
18 de Junho. Os esgotos do mundo continuam a falar.
Penso nisto, nestas novas pitonisas: os esgotos. Deles virá a clarividência em 2020.
Entre os esgotos e a orquídea, um caminho estreito.

Sem comentários: