Sumário das alegrias
(motes de Clarice Lispector)
1ª forma de alegria: os BONS HÁBITOS
Viver sem excessivas cautelas, deixar cair o que impede os cuidados simples,
a alegria diária que tem o seu esteio no hábito, no retorno da luz, no que vem
ter connosco e confirma a nossa existência, esforçando -nos por fazer diluir os
pontos de dor, às vezes por esquecimento, outras, para quem souber, por uma
espécie de massagem, à procura dos harmónicos modestos: «O bem -estar. É
uma coisa muito estranha: a comida é boa, o coração é simples, encontro um
menino na rua jogando bola, eu lhe digo: não quero que você brinque de bola
em cima de mim, ele responde: vou tomar cuidado».
2ª forma de alegria: animalidades
Descobrir que o corpo é um dom, saber isso sem esforço, como o gato ao sol.
O que é equivalente a «tornar -se real». O estado de graça de existir (não a
da inspiração), tranquila felicidade, lucidez, bem -aventurança física. Não é
um êxtase, não precisa de mediadores, maravilhosos fossem eles, anjos, ninguém ajuda, é só contacto, intimidade, com a mudez simples, sem máscara,
dos animais. Para nós, que conhecemos tantos obstáculos (isto é, falamos,
inventámos as máscaras e os corpos para prolongar e substituir os nossos), é
difícil permanecer muito tempo aí: «Sai -se melhor do que se entrou», porém
«sai -se lentamente (suspira -se ao sair), mas ficamos por assim dizer indizíveis
e incomunicáveis». O que Clarice Lispector gostaria de ser, integra -se nesta
segunda forma de alegria: «uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana
ou animal».
3ª forma de alegria: estar vivo
A aceitação acima de tudo o que sabemos e podemos. A alegria mansa: acordo
sem contrato nem disciplina, sem agradecimentos, sem consolação, sem emoção nem torpor, acontecimento puro: «Estou à janela e só acontece isto: vejo
com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir […] Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo.
Não mais que isto: vivo. E apenas vivo é uma alegria mansa». Consideremos
o uso de «talvez»: não tem a ver com a incerteza do saber -se vivo, mas com a
precaução subtil que impede a formação de qualquer doutrina.
4ª forma de alegria: implorar e receber
«Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e
mudamente se receba». Demoremo -nos neste outro uso de «talvez» (que não
pede a simétrica: «talvez não valha a pena ter nascido», quem pensa assim não
diz «talvez»), sem sombra de reserva nem ressentimento, apenas consciência de
que não haverá argumentos definitivos.
5ª forma de alegria: uma plenitude severa
A alegria como fatalidade (que toma conta de nós e não nos deixa sorrir).
É como ser executante da vida, descobrir isso é descobrir o carácter sagrado da
vida: «[A mulher] sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o
esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum
modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago», 169.
6ª forma de alegria: serviço de urgência
…
precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a fcar contente
porque esta está tão contente que não pode fcar sozinha com a alegria, e precisa
reparti -la […] é urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes,
que até parece que só se as viu depois que tombaram […].
7ª forma de alegria: memento vivere!
O dia de amanhã, o dia do nosso medo, da nossa previdência, o dia da formiga,
é um dia da prudência que não convém idolatrar (haverá outro dia da amanhã, o da herança, mas o seu uso não vem agora ao caso), pois impede o estar
diante dos agoras, uma sombra que não deixa ver o risco que nos cabe por estarmos vivos. Nestes tempos que correm, o mais grave dos esquecimentos, pois
só aprofundando o risco poderemos salvar -nos (é em Thoreau e a Bernarnos
que Clarice Lispector vai alicerçar a sua compreensão). Ainda mais que um
esquecimento, um irreconhecimento combativo: a luta cega pela segurança. O
carácter anestesiador dessa luta observa -se no viver como se houvesse outra
vida para viver, fazendo soar a cantilena do diabo: adia, adia…
Ora, diz Clarice: «A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de
amanhã» — ecoando o carpe diem de Horácio e a exigência goethiana de fazer
jus ao dia, no sentido de «não te esqueças de viver!» (mote de um maravilhoso livro de Pierre Hadot) — o que se prolonga na aceitação de que há um tempo para
cada coisa, para cada nascimento, sejam rosas ou morangos: «Sentia que havia
um tempo inadiável correspondente a cada momento […] Nada guardando para
o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir».
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