Estávamos em 1971, ano da publicação do "Cantigas do Maio" de josé Afonso, mas também do Festival da Canção onde a canção "Menina", cantada por Tonicha com letra de Ary dos Santos tinha sido vencedora, do programa televisivo com grande sucesso ZIP ZIP (onde os novos "baladeiros" eram dados a conhecer). Luanda, dizia-se, fervilhava como uma cidade cosmopolita colonial e a guerra, para muitos, estava decidida militarmente em favor dos portugueses. O MPLA proclamava o governo de Angola no exílio. Herberto Helder , depois de uma dezena de livros já publicados, publica o seu livro "Vocação Animal" , nos "cadernos de poesia" da editora Dom Quixote.
Em 1971, Carlos do Carmo, com a sua carreira de intérprete a rolar, vai pela primeira vez a Luanda fazer um espetáculo, na sequência de um outro espetáculo que tinha feito em Lourenço Marques (Maputo).
Herberto Helder vivia em Luanda e tinha uma colaboração no "Notícia - Semanário Ilustrado" onde publicava artigos e decidiu fazer uma reportagem sobre Carlos de Carmo e o espetáculo. Nunca o tinha ouvido cantar, mas tinham-lhe dito "que andava às voltas com António Gedeão". Parte para entrevista com o "espírito corrupto", levando uma pergunta maliciosa na manga, que era aquela que no programa ZIP ZIP, um rapaz altíssimo, "com voz de trombone-dobradiças nas partes mais inesperadas do corpo" (julgo ser Nuno Martins) perguntava sempre aos "baladeiros", após terem cantado, porque é que eles cantavam ao que a resposta era sempre a mesma: "para comunicar".
HH vai ao ensaio do espetáculo, observa-o atentamente, ouve uma entrevista que ele dá para a rádio a "uns rapazes da tropa", as orientações na preparação do espetáculo e conclui que "há ali inteligência , cultura, informação, sábios modos de enfrentar os assuntos". CC diz-lhe que quer fazer o seu caminho, quer cantar canções, poemas, que não o motiva ser um fadista tradicional. HH acha que chegou o momento de lhe fazer a pergunta maliciosa e vai daí, esperando " com escandaloso contentamento" a resposta useira, interpela-o: "porque é que você canta?" - "Canto por necessidade", responde CC. "Pronto já me lixou", pensa HH e volta à carga "não canta para comunicar com os outros?" Sim, responde CC, acrescentando "que isso acontece por ele não ceder a uma comunicação superficial" mas como resultante (a comunicação) "precisamente devido a ele cantar por uma necessidade profunda" (…) "não se pode enganar o público, pelo menos por muito tempo. Se a gente está profundamente consigo própria, acaba por estar profundamente com os outros. E então comunica , no sentido mais nobre". HH reconhece-lhe a inteligência e considera que ele "é um safado" por ter posto aquelas "armadilhas" a CC , mas acha que é assim "desta maneira que se vê como se move uma pessoa. Se é por si própria ou por corda como os brinquedos, ou por grãos de milho como os pombos".
HH ganha confiança, conta-lhe a história da pergunta e do ZIP ZIP e dos baladeiros e CC insurge-se contra "a inflação de baladeiros" e diz que só se pode confiar no Zeca Afonso, no Correia de Oliveira e no Manuel Freire".
A pedido CC fica a promessa de HH passar no camarim no final do espetáculo para lhe dar a opinião sobre o mesmo.
HH não é apreciador de fado, mas gosta da voz de CC. E das canções, caminho que acha que CC devia seguir. CC com certeza pensa o mesmo. Tentou umas canções e uns poemas, mas o público, aquele tipo de público que CC tinha já experimentado em Lourenço Marques, de "meia-idade" com poucos jovens, só quer fado, fado, fado, fado…".
HH a caminho do camarim acha que CC cedeu um pouco ao público e só lhe vem à cabeça uma canção de muito êxito de Melanie Safka - Look What They've Done To My Song Ma (1970).
Quem disse que "a linha é recta"?
Não confiem neste relato paupérrimo feito por mim e leiam, em homenagem a CC, o belíssima texto "Vê o que fizeram da minha canção, mãe…." no livro "Herberto Helder em minúsculas", Porto Editora, 2018.
E ouçam a música de Melanie, já agora! https://www.youtube.
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